Campo Grande, 05 de julho
de 2017.
Querido
Rafael,
Quando te ouvi falando sobre a
temática do Rebentar durante o evento do Sesc, meu primeiro pensamento foi: não
conseguirei ler esse livro. Um filho extraviado da mãe há mais de trinta anos e
um trabalho de luto que não se encerra. Pareceu insuportável demais pra mim. Mas
mesmo assim me investi de coragem e decidi fazer a travessia. Só durante a
leitura é que fui pensando no motivo da minha inicial covardia. Tem algo em
mim, desde muito cedo, que treme diante da possibilidade de perder um filho. Desde
a infância eu me esborrachava de chorar quando alguém cantava pra mim a música
do galinho que se perde da família: “há três noites que eu não durmo, pois
perdi o meu galinho, coitadinho, pobrezinho...”, conhece? Mas o medo não parou
por aí.
Quando engravidei foi só depois de
ter muita certeza de querer um filho. No oitavo mês tive complicações e ele
precisou ser parido em uma cesárea de emergência. Por um fio eu não perdi meu
filho ainda dentro de mim, como quase foi também com a Isa (aliás, que
personagem doce). Depois do nascimento, ele ficou dias internado e só pude
pegá-lo no colo um tempo depois, dias depois. Eu entrei num lance muito
estranho, como se eu estivesse dentro da água, sob e sobre, à deriva. Me perdi
nas horas, me perdi de mim. Não dormia e nem comia direito, mal escovava os
dentes. Queria ficar ao lado dele durante as 24 horas do dia. Eu tive muito
medo de perdê-lo, ainda que todos me dissessem que ele estava bem. Só consegui
voltar à superfície quando meu obstetra me disse: “você não tem que dar conta
de tudo”.
Estou te contando tudo isso porque
acho que há aí um dado histórico da nossa relação com a maternidade. Talvez,
dois séculos atrás eu não teria sentido nada disso, talvez, nem eu nem ele
teríamos sobrevivido. Talvez, em outra época seu romance não fizesse sentido. Há
uma relação da mulher com a maternidade que é (cruelmente) socialmente
construída, de que a vida de uma mulher deve mudar completamente com a vinda de
um filho. Muitas coisas mudam, mas um filho é pra ser mais um de nossos grandes
motivos e não o único. Falar tudo isso é fácil, o difícil é lidar com as culpas
que vêm no pacote quando você tenta se desvincular um pouco dessa ideia de que
há um amor (quase santo) de uma mãe por seu filho. Estou, portanto, inserida historicamente
nesse rol de mulheres que amam demais seus filhos e que não saberiam como
continuar a viver com um extravio desses que Ângela viveu.
Eu comecei a chorar na segunda
página e só parei um pouco na cena do natal na casa de Isa. Durante a leitura
dava graças a deus (um deus que eu nem acredito) pelas pausas que você fazia,
assim podia voltar à superfície e respirar um pouco. Meu marido me via chorando
e perguntava o motivo. Esse livro é foda, eu dizia. E contava o tema. Ele implorava:
“Então não leia!”. Eu continuava. Curiosamente, a livraria na qual comprei seu livro
mandou alguns marca-páginas e um deles fazia a propaganda de um livro cujo
título era: Pare de sofrer. Eu ri do apelo do papel, que restou completamente
vão. Fiz a leitura dele toda em casa, apesar de ter pensado várias vezes em
trazê-lo para o consultório e ler nos intervalos ou quando algum paciente
faltasse, mas imagine como seria? No mínimo borraria toda a maquiagem de
psicóloga.
Então, li seu livro em casa, durante
as horas que tinha para cuidar do meu filho e das outras coisas todas da vida. Como
disse, nas pausas, eu tomava fôlego e mergulhava novamente nessa história
comovente de uma mulher que não consegue seguir a vida depois da perda. Em todas
as horas de leitura, meu filho de quase dois anos esteve comigo, então, nas
pausas, olhava pra ele e não conseguia imaginar como seria. Em alguns momentos
pensava: mas por que ela não conciliou as coisas? Por que não continuava suas
buscas ao mesmo tempo em que voltava a trabalhar, mudava a fachada da casa,
etc? Mas imediatamente depois eu me vestia da pele dela e não sabia se
suportaria algo parecido. Não posso julgá-la, portanto. Eu sempre achei que
perder um filho pra morte seria a pior dor do mundo, mas nunca tinha pensado
que pode haver algo pior: perder um filho pra esse mundo cruel. Tentava me
consolar: pode ser que ele tenha sido mandado pro exterior para alguma família
gringa que quisesse muito um filho. Essa seria a melhor das hipóteses. Mas tem
todas as outras, que prefiro nem mencionar. É como você diz: não é possível
fazer o luto de um filho que pode estar vivo. Essa deve ser a pior dor do
mundo.
Eu tenho tentado ler romances com um
olhar técnico, porque tem sido um aprendizado pra mim, mas sua história me
tomou de um jeito que deixou meus olhos turvos. O tempo todo você faz a
metáfora de Ângela submersa, indo e vindo com as ondas, subindo à superfície,
tomando fôlego, tentando não morrer afogada. O que a mantinha viva era somente
a esperança de reencontrar o filho. Mas quando ela percebe que estava esperando
sua criança de volta e não aquele homem do retrato simulado de 30 anos depois,
parece que cai na real de que há uma vida fora do mar. Há uma vida como mulher
e não só como mãe. Foi exatamente como me senti lendo o livro, sua linguagem
conseguiu me fazer sentir o mesmo que Ângela, dentro d`água. Então o mar
simboliza essa maternidade congelada no tempo.
Aliás,
uma das metáforas que você faz sobre o tempo se grudou em minha memória: a
areia do tempo empedrada na ampulheta. Uma das coisas que mais observo nos
livros que leio é justamente a questão do tempo lógico. E você fez isso de um
jeito muito bonito: passado, presente. Trinta anos que não passam. Um quarto de
criança intocado pelo tempo, desbotado, mas intacto. Todas as cenas que se
passam nesse quarto são de matar qualquer um afogado: ela cheirando a roupa
dele logo que retorna pra casa com as mãos vazias; ela encurvada sobre a cama
de criança lembrando do dia em que o perdeu; ela não querendo que a
reforma tocasse esse seu santuário; ela
tendo que se desfazer disso (foi a cena mais dolorida pra mim). Foi como
atravessar uma tempestade e acordar no dia seguinte com o gosto da areia da
praia na boca, de ressaca. Ainda agora me emociono para escrever isso.
A
vinda do sobrinho-neto como possibilidade de renascimento de uma mulher (ar)rebentada
e tentando rebentar depois dos trinta anos da perda de seu rebento. Gostei muito
da forma como você trabalhou esse significante “rebentar”. Fiquei com vontade
de sair conjugando o verbo, mas de um jeito não muito tradicional:
Eu,
rebento.
Tu
me rebentas.
Sem querer fazer trocadilhos
cretinos, seu livro é de arrebentar. Ah, como psicóloga, senti vontade de
arrebentar a cara da Suzana (psicóloga) quando de sua primeira reação à decisão
de Ângela em não mais procurar pelo filho. Senti o mesmo pela irmã dela,
Regina. Sua escrita é doce, suave, envolvente (você sabia o momento exato de
colocar a curiosidade no leitor para que a história ganhasse vida), melodiosa,
dolorosa, ainda que esperançosa.
Ao
fim da travessia, sobrevivi. Com os braços doloridos de tanto me bater para não
morrer afogada, com os olhos turvos pela água salgada, seu livro me fez
certamente uma pessoa melhor. Obrigada por isso.
Um
abraço e parabéns,
Isloany
Machado
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