Querido
Maurício,
Ainda ontem te disse que minhas
leituras andavam a passo de tartaruga e que provavelmente demoraria a terminar
seu livro, mas acontece que depois do aparecimento do Lucas no meio da história,
não consegui mais parar. Coloquei o menino pra assistir desenho e o pobre ficou
sem comer até às oito da noite, quando terminei A instrução da noite. Só então
voltei a ser mãe e a cuidar das outras coisas da vida. Eu sei que esta pode ser
só mais uma resenha do seu livro, já tão bem-falado, mas escrevo mais por mim
que por você. Era preciso dizer algo sobre ele, já que, ao contrário do seu
personagem-narrador, eu sempre opto por desembuchar.
Ao fim, a história ficou
reverberando na minha cabeça como a poeira de uma casa recém derrubada, que
demora a assentar. Diante de escombros a prenunciar uma silenciosa e duradoura
ruína, queria escrever logo em seguida, mas sabia que precisava da noite
dormida para assentar melhor as ideias. São cinco horas da manhã, a hora em que
mais tenho conseguido escrever, e a embriaguez causada pela leitura está
ressaqueando.
Você me disse que seus enredos são “ridiculamente
mínimos”, mas sabe, fiquei pensando, o que na vida não é ridiculamente mínimo? Uma
porta que não abre, um pai que vai embora sem explicações, uma mãe carcomida
pelo tempo daquilo que poderia ter sido e não foi. Aliás, as torções temporais
que você fez são de doer. “Subitamente vencido pela raiva de saber que
continuarei sentado aqui remoendo as coisas que aconteceram, amargurado pela
vontade de revanche que não realizarei”. Ah, rapaputaquepariu.
Sua história faz com que a gente vá
e volte. Volte e vá, ou ache que vai, mas volta. Este homem sem nome,
esburacado de desamparo, abandono e ódio, é quase um fantasma, ou o espectro da
criança há tempos abandonada. Parece também um Hamlet, cujo fantasma do pai
aparece para pedir algo, mas o que tem de ser morto é algo que insiste muito em
fazer-se vivo: a dor do abandono, a amargura do ódio, a devastação do
desamparo.
A volta do pai só faz presentificar
e ratificar que tudo está em ruínas. Ele encontra o filho “bem”, conforme quer
crer por motivos de suas próprias necessidades. Mas a casa, que você fez tão
viva com as prosopopeias dadas aos objetos (uma garrafa de café muito quieta,
as dobradiças que gemem baixo, e aqui eu poderia dar um milhão de exemplos)
abriga três pessoas barradas por suas próprias solidões. Os objetos da casa
estavam mais vivos do que as pessoas que ali moravam. Os três mimetizam-se com
as coisas, porque na verdade não há vida.
Alice, a menina que é sua
companheira, tão cheia de vida a princípio, queda adormecida em seus desejos. A
mãe, de olhos vazios, transmite ao filho uma inércia, um ódio implosivo. A irmã,
para quem o narrador conta a história, escolhe viver. Mas para viver, é preciso
fugir desta casa onde só os objetos têm sentimentos. Fiquei pensando em que
medida o pai também não teria fugido de uma mulher nascida ruína. Sei lá. Parece
que ela transmite mesmo algo ao filho quando para de viver ao ser deixada. Isso
é tão cruel. Uma mulher abandonada deveria saber que continua viva, que há a
maternidade e que isso implica em cuidados. Dá vontade de pegar o menino no
colo quando ele volta pra casa depois do segundo sumiço do pai. A mãe
anestesiada na frente da tevê processando sua falta de serotoninas e etc. Alice
em dormência, incapaz de ouvir. A casa se faz grande demais.
A casa para onde foram depois da ida
do pai para sabe-se lá onde, Mato Grosso, Goiás, o raio que o parta. Eu nasci
em Mato Grosso, sabia? Um lugar de imensidões, e de muitas devastações. Palavra
que me faz voltar ao seu livro. É tudo muito devastador. Que linda a cena de
retorno à antiga casa. Lugar que carregava em suas paredes e fios e janelas as
memórias da infância, agora destroçadas. Mais uma vez a prosopopeia invade a
cena e toma o leitor comovido com a morte dos fios de cobre e etc.
Fiquei feliz quando ele correu atrás
do pai. Feliz, mas sem esperanças. Feliz quando ele conta sobre como conheceu
Alice, explicitamente uma quase substituta da irmã. Não sei se foi intencional,
mas soou quase como uma relação incestuosa a dele com a Teresa, a irmã. Ao dizer
ter sentido prazer em ver Alice espalhando suas roupas nos lugares vazios
deixados por Teresa, ao mencionar timidamente as lembranças quentes da
infância. Foi muito sutil, mas me pareceu incestuoso e, por isso mesmo,
demasiadamente humano.
Tecnicamente, achei incríveis seus
diálogos intercalados com pensamentos, propositalmente para confundir o leitor,
que precisa se esforçar para entender aquilo que não tem explicação, aquilo que
é totalmente absurdo. Adorei as metáforas e as prosopopeias (foi uma das coisas em relação à
técnica que mais gostei). Achei corajoso o atropelo das vírgulas. Seu narrador-personagem,
apesar de implodir de ódio e não conseguir se mover, nas palavras é capaz de
trucidar a linguagem para realizar seu desejo. O uso do tempo verbal no futuro
do pretérito não é uma forma de fantasiar a realização de algo que nunca
acontecerá? Tem lá seus efeitos em estruturas clínicas como a dele (aqui falou
a psicanalista...rs).
Bem, eu poderia escrever ainda
muitas coisas sobre A instrução da noite, mas a hora me chama e eu preciso ir
trabalhar. Estas foram minhas impressões gerais. Parabéns pela coragem de
inovar diante dos mínimos absurdamente comezinhos. Desculpe minha pretensão,
não sendo uma especialista no assunto, em escrever sobre um livro já tão
bem-dito.
Um abraço,
Isloany
Machado, 24/06/2017
E a maluca aqui se fixou na parte "Coloquei o menino pra assistir desenho e o pobre ficou sem comer até às oito da noite", hehehehehe. Vou deixar o meu wats com o Adriano pra ele pedir socorro, kkkkkkkk
ResponderExcluirMas ele ficou de boa....
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