Mamãe
queria que eu fosse médica. Era seu sonho. Desde criança ela o quis para si,
ser médica. Não podendo, pediu a mim, desde criança, que realizasse seu desejo.
Queria realizar seu desejo em mim, por procuração. Sempre tive na cabeça que
faria isso, mesmo que em meu diário registrasse que estava a escrever um livro.
Às vezes, os desejos da mãe são inquestionáveis. Mas não por muito tempo quando
se tem uma filha histérica. Estudei a vida toda porque gostava de estudar e
lembro que no terceiro ano fazia jornada dupla, manhã e tarde, para entrar na
medicina. Chegadas as provas, não passei. Foi meu primeiro e grande fracasso. A
reação de mamãe não foi boa. Ela esperava muito de mim. Disse que eu não havia
feito tudo o que podia. Talvez não tivesse feito mesmo. Tinha motivos para
isso.
No ano seguinte, nada me esperava além
do cursinho pré-vestibular. Uma chatice. As mesmas piadas feitas pelos mesmos
professores. No fim do túnel, a medicina. Enquanto isso aprendia outras coisas,
lia Machado de Assis, Clarice Lispector, Cecília Meireles...Ah, Cecília
Meireles...De repente o professor disse sobre ela: “Sua escrita é intimista,
muito influenciada pela psicanálise. A teoria do inconsciente que investiga as
profundezas do ser humano através de um processo de análise”. Pergunto ao
professor: "Como faz pra ser psicanalista?”. De seu conhecimento sobre o
assunto, disse: “Creio que precisa fazer psicologia e depois uma formação em
psicanálise”.
Passados os dias, esqueci o ocorrido.
Passados os meses, recebi um panfleto da UFMS fazendo propaganda da Medicina em
Dourados, mas atrás, no lugar dos cursos esquecidos pela mídia acadêmica,
estava listada a psicologia. O desejo foi maior do que eu e me engoliu. Cheguei
em casa e disse pra mamãe: “Vou fazer psicologia”. Ela chorou, rangeu dentes,
tentou demover a ideia da minha cabeça. Apelou a outras pessoas para que me
convencessem de que isso não dava dinheiro. O pai também: “Filha, se for pra
fazer qualquer cursinho, faz aqui mesmo”. Não dei ouvidos. O desejo é
ensurdecedor.
No mês seguinte estava estudando
psicologia em outra cidade, 700km longe deles, mas trazendo na bagagem todos os
meus fantasmas. Lá pelas tantas encontrei Lacan, nos estudos, na análise, nas
palavras. Foi uma espécie de reencontro. Passei anos ouvindo as pessoas depois
que me formei, até ter um estalo: eu estava sendo a primeira leitora de
histórias que estavam sendo reeditadas. Coisa que só uma análise é capaz de
fazer. Entendi finalmente o que quis dizer Lacan: “Fazer análise é escrever sem
caneta”. Mas decidi meter a caneta quando entendi que as neuroses têm estrutura
de ficção.
Na infância, a literatura me salvou do
tédio da vida religiosa imposta pela família. Na adolescência, me salvou disso
também e ajudou a encontrar respostas para os absurdos da vida. No mestrado, me
salvou da linguagem acadêmica. No suicídio do primo, me salvou da loucura. Foi
quando comecei a escrever, de fato, e reencontrei a menina escritora do diário.
Ou seja, a literaCura. Minhas duas profissões são quase idênticas: quando escrevo,
edito meus próprios livros e textos, quando sou analista, ajudo, fingindo de
morta, as pessoas a escreverem e editarem em tempo “real” suas próprias
ficções. E tudo isso só é possível porque fracassei. Tanto a literatura quanto
a psicanálise só sabem falar dos fracassos. Se houvesse sucesso, ninguém
precisaria nem de uma nem de outra. Mamãe até hoje não se conforma com meu
fracasso, mas eu não sabia que seria tão feliz sendo tão fracassada.
Isloany
Machado, 16/11/2016.
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