Ler Manoel de Barros, dependendo da fase da
vida em que se está, pode ser perturbador. Se for uma época da vida em que o
sujeito estiver bem calcado em suas certezas, a leitura pode ser devastadora.
Para muitos, é mais fácil pensar que a poesia do ínfimo não quer dizer nada, é
uma besteirinha qualquer de criança, sem nenhum tipo de valor estético no
sentido da masturbação das palavras. Sim, porque há poetas punheteiros de
palavras. Com isso quero enfatizar que em Manoel de Barros o que encontramos é
uma estética avessa ao lirismo das belas palavras, das rimas e das construções
rococós. Estamos muito mais no campo da desconstrução.
Para
que os escritos poéticos desse autor, nosso e do mundo, façam algum sentido é
preciso estar aberto aos descortínios da linguagem. É preciso saber ouvir o que
vai além das significâncias. Este processo é deveras claro em seu Livro sobre
nada, em que ele diz, em seu “pretexto”:
O que eu
gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma
amiga sua em 1852. [...] Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada
existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se
sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma
por escrito [...]. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer
coisas desúteis. O nada mesmo. (BARROS, 1996/2010, p. 327).
O nada é, para ele, coisa nenhuma
que tenha importância. As coisas nenhumas englobam tudo aquilo que está à
margem, fora do circuito do que é considerado valioso para nossa sociedade
capitalista. É, ainda, tudo aquilo que esta própria sociedade produz para que
seja lixo. Manoel de Barros, com seu olhar de poeta do insignificante, oferece
aos restos do nosso consumo desenfreado um status de matéria de poesia. Ele o
faz não só com os objetos, mas principalmente com as palavras. Nesse universo
poético, é possível inventar brinquedos com palavras, para isso, o truque é só
virar bocó (BARROS, 1996/2010). As palavras aqui perdem seu status de
nomeadoras, já que fica muito claro que o pano de fundo é a ideia de que a
palavra mata a coisa: “À mesa o doutor perorou: Vocês é que são felizes/porque
moram nesse Empíreo./Meu pai cuspiu o empíreo
de lado. O doutor falava bobagens conspícuas./[...] A gente falava bobagens
de à brinca, mas o doutor falava de à vera.” (BARROS, 1996/2010, p. 330-331).
A estética da poesia “manoelina” é
subversiva. Nem todos engolem. Acham ofensiva, desorganizada, feia. Mas é pra
isso que serve o subversivo, para gerar um incômodo na própria linguagem que,
se não cuidarmos, engessa os sujeitos. Tudo o que vai contra o status quo é considerado subversivo,
porque nos move de nossas certezas. Quando Manoel de Barros atrapalha as
significâncias com suas poesias avessas, causa um mal-estar que, como disse
antes, pode ser devastador. Quando se espera algum enlevo em suas palavras, o
que encontramos é o avesso disso: “Preciso atrapalhar as significâncias. O
despropósito é mais saudável do que o solene. (Para limpar das palavras alguma
solenidade – uso bosta) Sou muito higiênico.” (BARROS, 1996/2010, p. 338). O
solene não diz nada sobre o sujeito, diz apenas do que é importante para a
racionalidade.
A
intenção poética de Manoel é invocar a subjetividade a partir de outra ordem.
Nesse sentido se aproxima muito da psicanálise enquanto uma ciência (há
controvérsias) que convoca o sujeito do inconsciente, avesso à racionalidade,
que se coloca a dizer besteiras num processo analítico. Para Lacan
(1972-73/1985), devemos engajar o sujeito a dizer besteiras, associar
livremente, não a dizer tudo, porque não se pode dizer tudo. Dizer besteiras é
tentar ficar longe das próprias censuras e julgamentos, é o que deve ocorrer,
já que é quando os ditos não são racionais que podemos trabalhar em
psicanálise, esta é a regra do jogo.
O
posicionamento do poeta, para além da psicologia do autor, configura-se
semelhante ao discurso da histérica, este que visa desarrumar o status quo, questionar a ciência,
desbancar o saber do mestre. Há um compromisso do discurso da histérica com o
início da psicanálise inclusive, pois se não fosse isso, Charcot e Freud não
teriam se debruçado sobre aqueles emblemáticos casos de mulheres que desafiavam
o saber científico da época. Tem sido assim até hoje, tanto que Lacan (1969-70/1992)
o elevou a um dos quatro discursos. Tamanha é a importância desse discurso que
é justamente o que move, por exemplo, um processo analítico, em que é preciso
que a fala do paciente seja histerizada para que se caminhe para qualquer lugar:
Não estará aí,
afinal, o próprio fundamento da experiência analítica? Pois digo que ela dá ao
outro, como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histeriza seu
discurso, faz dele urn sujeito a quem se solicita que abandone qualquer
referência que não seja a das quatro paredes que o envolvem, e que produza
significantes que constituam a associação livre soberana, em suma, do campo.
(LACAN, 1969-70/1992,
p. 35).
Manoel
de Barros faz de sua poesia uma histerização daquilo que é considerado belo,
sublime, importante. Desarruma a linguagem e subverte tudo o que em nós está
bem assentado. Ao mesmo tempo em que pode ser devastador, pode também ser
alivia-dor para quem se identifica com essa estética do avesso, da
desimportância. Ele nos convoca a construir algo novo após essa nadificação do
mundo. Se nada do que está posto é importante, o que faremos com os restos? O
que de tortuosamente belo construiremos a partir das ruínas de um mundo onde só
O nada faz sentido?
BARROS,
Manoel de. Livro sobre nada. In: Manoel de Barros – Poesia completa. São Paulo:
Leya, 1996/2010.
LACAN, Jacques. O Seminário livro 17: O
Avesso da Psicanálise. Rio de
Janeiro: Zahar, 1969-70/1992.
______. O Seminário
livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1972-73/1985.
Isloany Machado, 26/01/2017
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