É
tempo de ipês. Numa época em que tudo está seco, de repente nos deparamos com
uma explosão de várias flores que se juntam formando algo grandioso que enche
nossos olhos. Estou há dias rodeando em torno disso porque passei por uma
experiência que ainda não consegui dar nome. Foi uma coisa física, esquisita,
um calafrio, sei lá. Pensei em escrever alguma coisa sobre meu encontro com a
árvore florida, mas nem sabia por onde começar para não ficar parecendo aquelas
pessoas meio malucas que saem por aí abraçando árvores e entrando em sinergia
com a natureza. Nada contra, acho até bem interessante. O fato é que não sabia
o que dizer.
No
mesmo dia em que vivi a experiência da árvore, recebi pelo correio um pacote
com um livro (Terra dos Homens – Antoine de Saint-Exupéry), enviado por uma
amiga que está morando nos Estados Unidos e de quem sinto uma saudade filha d’uma
égua. O livro tinha sido de sua mãe mocinha (21 anos). A mãe dela não está mais
no mundo físico, habita o mundo das lembranças. Só isso já seria emocionante,
mas o livro veio acompanhado de uma carta. Chorei de saudade e as palavras de
minha amiga me fizeram sentir seu cheiro bem ali pertinho de mim. Nesse tempo
em que tudo está seco, a carta foi um oásis. O segundo naquele mesmo dia.
Iniciei
a leitura. Sabe, acho que sou uma pessoa “abensonhada” pelas palavras. Elas sempre
me acodem. Exupéry é famoso pela criação do Pequeno Príncipe, personagem que
ganhou vida própria e hoje é praticamente um produto. Eu não sabia nada da
história do autor, mas nesse Terra dos Homens descobri que ele, para além da
escrita, era também aviador. Nesse livro ele fala lindamente do homem, de seus
desertos. Ele se pergunta, olhando para as pessoas cuja argila de que são
feitas já está endurecida, que estranha máquina é essa de entortar humanos? Por
que as pessoas ficam duras, desertificadas? Essa máquina de entortar humanos
mata o Mozart que poderia estar, potencialmente, em cada criança.
Lendo
isso eu fiquei pensando: em que momento as pessoas entram nessa máquina? Passados
uns dias li a notícia de um médico que zombou do paciente por ter falado errado
o nome de uma doença. A primeira coisa que me veio à cabeça é que o ouvido, ou
melhor, a escuta dele estava cheia de barro seco. Voltei à minha questão:
quando as pessoas entram na máquina de entortar humanos? E acho que é na
adolescência. Partindo da ideia de que na infância (por enquanto) as cobranças
são menores, no final desta etapa, quando chega o momento em que é preciso
escolher o que se vai fazer para ganhar a vida, as coisas começam a “endurecer”.
“Você vai fazer isso? Mas isso não dá dinheiro!”. Dinheiro,
dinheiro, dinheiro, para comprar coisas, coisas, coisas, quando o mais
importante não está aí. “Faça Direito, Engenharia, Medicina”. Os adultos, já
devidamente endurecidos, se esquecem de perguntar: “Do que você gosta? Vamos
encontrar um jeito de você viver fazendo isso?”.
Quem
sabe o ouvido do moço que reverberou nas redes sociais estava endurecido porque
seu desejo estava em outro lugar? Hoje as “melhores escolas” colocam seus adolescentes
em baias para que não tenham contato com os colegas e não desviem a atenção dos
estudos, imitando o mundo corporativo. Dá-lhe antidepressivos e ansiolíticos
para suportar a dor da morte lenta e cotidiana dos Mozarts. Isso quando a morte
não ultrapassa os limites do simbólico e o sujeito adolescente morre sufocado
pela própria casca.
É
preciso olhar para os lados. É preciso ver, ouvir, falar, sentir. Apreciar a
beleza do inverno, mesmo que quase tudo esteja seco. Foi só depois de ler esse
livro que pude significar o episódio do ipê. Lá vinha eu, começando a endurecer
a argila, preocupada com as contas pra pagar, o almoço pra fazer, as coisas
todas pra cuidar, quando fui pega de surpresa pela visão da árvore. O calafrio,
a onda que fez o couro se arrepiar, foi a expulsão da camada endurecida. Que um
dia ou outro todos vamos passar pela máquina, isso é certo, mas há um antídoto.
Basta abrir os olhos para ver aquilo que realmente importa. Se conseguirmos
fazer isso, mesmo que de vez em quando, não deixaremos a argila secar a ponto
de se tornar inquebrável. Quem sabe assim, a cada dia um pequeno Mozart
renasça, ou talvez um oásis se mostre, ou ainda um ipê se coloque diante de
nossos olhos com toda a força que só é possível após alguma morte.
Aquela é a minha árvore. Já perdeu
todas as flores e provavelmente em breve eu me esquecerei dela. Mas ano que vem
sei que ela novamente me salvará.
Isloany Machado, 02/08/2016
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