Flectere si nequeo
superos, acheronta movebo!
Todo psicanalista, pelo menos uma
vez na vida, já leu essa frase de Virgílio. Justamente porque ela foi citada
por Freud no prólogo daquela que é considerada a grande obra psicanalítica: A
interpretação dos sonhos (1900). A famosa Flectere
si nequeo superos, acheronta movebo, significa: se não posso dobrar os
poderes superiores, moverei o inferno! Acheronta é o nome do rio que atravessa
o inferno. Freud queria dizer que sua teoria não falava a respeito dos
elementos da razão, bem explicadinhos pela ciência, bem mensurados, constatados
e comprovados. A psicanálise é sobre aquilo que a razão insiste em esconder,
recalcar.
Ora, sabemos também que o recalcado
é insistente, ele se mostra em algum lugar aí entre as palavras, entre
lembranças e esquecimentos. E por que é infernal? Ser infernal é ruim? Talvez
seja considerado ruim devido a um legado maniqueísta que insiste em enquadrar
as coisas entre bom/ruim, certo/errado, salvo/perdido, celestial/infernal. Será
que o inferno é assim tão assustador? Acho que depende. É preciso, assim como
sugeriu Lacan, fazer o deslizamento dos significantes. Isso implica que podemos
pensar em mais um sentido para a palavra. In.fer.no: Substantivo Masculino. 1. mit local subterrâneo habitado pelos
mortos. 2. rel para os cristãos,
lugar em que as almas pecadoras se encontram após a morte, submetidas a penas
eternas. 3. psicanal. Local
linguageiro habitado pelos conteúdos inconscientes recalcados.
De qualquer modo, não podemos negar
que isso que é recalcado, justamente é recalcado por ser considerado
inaceitável, seja pelo sujeito, seja pelo Outro. É preciso que vá habitar algum
lugar desconhecido, e a ameaça de seu retorno causa, dentre outras coisas,
angústia. Mas espere aí, então se a análise é infernal, se esse processo
analítico seria fazer a travessia do Acheronte, então o analista é o barqueiro
do inferno? É claro que pensando nisso não pude deixar de lembrar do Auto da
Barca do Inferno, de Gil Vicente. Fui reler e morri de rir com a seguinte
passagem:
FIDALGO
Para o Inferno, então! O inferno será para mim? Oh triste! Enquanto vivi Não
pensei que seria: Pensei que era fantasia! Pensava ser adorado, Confiei no meu
estado E não vi que me perdia. Venha essa prancha! Veremos esta barca de
tristura. (tristeza)
DIABO
Embarque vossa doçura, Que cá nos entenderemos... Tomareis um par de remos,
Veremos como remais, E, chegando ao nosso cais, Verá como bem vos serviremos.
O Fidalgo reluta em entrar na
embarcação que está indo pro inferno e o Diabo, em outras palavras, lhe diz:
“Entre meu querido, aqui nos entenderemos, Pegue seu par de remos e vamos ver
como remarás”. É como o famoso “caminhe” de Freud. Piadas à parte, a travessia
da infernal análise é impossível de ser feita sozinho. Pra isso está lá o
analista/barqueiro do inferno, não para remar, mas para ajudar o atravessa-dor
a contemplar as belezas (por que não?) que poderiam ter sido construídas de
outro jeito, e sempre há tempo. Nesse sentido, um analisando fazendo a
travessia do inferno é como um “morto” (em seu desejo?) que revive a própria
vida de frente pra trás. E quem sabe aonde ele chegará?
Isloany Machado, 30/05/2016
Excelente texto!! 👏
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