Milhares de pessoas andam, todos os dias, de um
lado para outro. Cruzam avenidas, sobem e descem escadas, aguardam o ônibus, o
metrô, de vez em quando caem nos vãos da estação e acabam sendo mastigadas pela
pressa supersônica de um tempo em que não se pode esperar. Alguns, ligados no
automático, pilotam seus carros, que também são automáticos. Dirigem sem ter
condições de digerir a vida. Assim é que vemos, todos os dias, uma dança de
corpos. Um certo bailar de pessoas que até pra sofrer não podem demorar muito. Poderíamos
dizer que essa dança maluca, que não dá espaço nem para o pensamento, seria uma
forma de manter a dor guardada num canto pra ver se esquece de doer?
Pensar dói. Dói na cabeça, dói na alma. Questionar
pode fazer com que a vida mude radicalmente. Por outro lado, não pensar, não
perguntar, a princípio pode até não doer no pensamento, mas dói no corpo.
Panicamos, fibromialgiamos, obsessivocompulsionamos, paralisamos. É o corpo
dando voz àquele pensamentozinho besta que insiste. O corpo é mestre em dizer
palavras que tentamos sufocar. Palavra dói, palavra dá forma à dor, que não esquece
de doer, nunca. E não é que um dia a gente se vê embolado nos fios de nossas
próprias palavras sem saber como fazer pra desemaranhar? Até que algum dia, quem
sabe, alguma pessoa que ande por aí destampada chega e diz: você precisa de
ajuda, procure um psicanalista. Ah, mas isso é coisa de doido, confere? Então,
antes de chegar a um consultório, muitas pessoas já procuraram tudo que as
fizeram parecer menos malucas. Outras ainda sequer procurarão uma análise, pois
muitas preferem deixar os cães dormindo. Ora, se podemos ouvir seus latidos de
longe, é porque não estão dormindo! [1].
Algumas chegam aos consultórios de psicanálise,
apostando a última ficha. E a primeira coisa que querem saber: quanto tempo
isso demora? Assim como Freud, respondemos: caminhe. Mas de fato não podemos
saber quanto tempo uma caminhada demorará, pois pode ser que no meio do caminho
tenha pedras, tenha pedras no meio do caminho tenha pedras no meio do caminho tenha
pedras [2]. E que diabos são as pedras? Podem ser resistências ao tratamento:
transferências coloridas demais ou de menos, palavras excessivamente gozantes,
enfim. Desde Freud, havia pressa daqueles que o procuravam. Ele mesmo tentou,
sem sucesso, encontrar um caminho mais rápido para a análise. Desistiu. É preciso
escovar as palavras, como diria Manoel de Barros, e isso leva tempo.
Mas afinal, quando é que termina uma análise? Tudo
depende. Muitas pessoas que chegam a uma análise dão-se por satisfeitas com o
processo quando a angústia diminui, quando a ansiedade deixa de causar
paralisação, quando conseguiram entender o suficiente para saber de sua
implicação e responsabilidade pela própria vida. Outras vão dar mais voltas,
escovar mais palavras, deixarão cair mais idealizações, irão um pouco mais além
na desmontagem dos significantes. Alguns atravessarão o fantasma, depois de
rodear muitas e muitas vezes as pedras do meio do caminho tinha uma pedra,
tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Muitos têm medo de voltar a
sofrer do que sofriam no início, como se corressem o risco de dar passos para
trás, mas a análise é um labirinto cujas paredes são nossas próprias histórias
e, mesmo que passemos várias vezes pelos mesmos lugares, em nenhuma delas eles estarão
iguais. É um caminho sem volta. Ao mesmo tempo em que isso é reconfortante é
também assustador, pois bem sabemos que às vezes nos agarramos como carrapatos
a certos tipos de dores e largá-las implicaria em correr o risco de morrer de
fome, já que nossos sintomas se alimentam do próprio sofrimento.
Voltando ao fim da análise, podemos dizer ainda
que algumas pessoas insistem mais, ainda, derrubam as paredes dos seus próprios
labirintos, quebram as pedras, reduzem tudo a pó. Mas isso só é possível quando
conseguiram se desprender das paredes. Será que ao fim os cachorros voltam a
dormir? Acho que não. Acho que ao fim, faz mais sentido pensar que soltamos os
cachorros. Who let the dogs out? Ao fim
estaremos curados? Existe cura em psicanálise? A sugestão de Freud em Análise terminável e interminável é que,
ao invés de perguntarmos como se dá uma cura, perguntemos quais são os
obstáculos que se colocam no caminho de tal cura. Penso que curar-se seria
desprender-se das próprias paredes, rearranjar as pedras do meio do caminho,
montar o quebra cabeça da própria história, depois desmontar e jogar as peças
pra cima. Depois de tudo isso, restará o inconsciente, sempre ele, o incurável.
Isloany Machado, 12/04/2016
[1]
Referência ao exemplo dado por Freud no texto Análise terminável e interminável.
[2]
Referência ao poema de Drummond No meio
do caminho.
Lindo e pontual seu texto! Tocante. Pertinente. Doce, criativo e sutilmente cortante! E de acordo com vc: pra soltar os cachorros!!! Um beijo. Parabéns! Robson - Curitiba.
ResponderExcluirOi Robson, fico muito feliz que tenha gostado <3
ExcluirAbração
Uma palavra:reflexão.
ResponderExcluirRefletir é sempre bom né?
ExcluirAbraços
"A análise um caminho sem volta..." Tão fascinante e tão dolorido! rsrs
ResponderExcluirSempre espero por uma postagem nova!! ;)
Que bom saber disso!!!
ExcluirObrigada
Muito bom o texto, simples, claro e alegre!
ResponderExcluirObrigada querida!!!
ExcluirMuito bom o texto, simples, claro e alegre!
ResponderExcluirObrigada querida!
ExcluirAnálise... "um caminho q não tem volta"
ResponderExcluirParece assustador, mas a cada passo dado, há um tantinho assim de alívio, de vontade de "botar os cachorros pra correr". Maravilhoso o texto e esclarecedor!
Análise... "um caminho q não tem volta"
ResponderExcluirParece assustador, mas a cada passo dado, há um tantinho assim de alívio, de vontade de "botar os cachorros pra correr". Maravilhoso o texto e esclarecedor!
Que bom que gostou Rita!! É um caminho sem volta mesmo
ExcluirNossa, que texto!Gostaria de conversar, tirar alalgum dúvidas. Como isso seria possível? Abç
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