Ultimamente tenho pensado muito no chuveiro,
na hora do banho. É um tempo que tenho para estar só com meus pensamentos. Não que
me passem coisas muito filosóficas ou existenciais pela cabeça, pelo contrário.
Penso, por exemplo, no que fazer para reverter o processo de bunda negativa que
o pós-parto me deixou como herança. Essas coisas passam pela cabeça, além dos
compromissos diários, as contas a pagar, enfim. Mas eis que ontem me veio uma
lembrança da infância que casou com uma ideia para uma crônica que há tempos
estava fermentando.
Eu
queria falar sobre o processo de análise, para tentar responder a pergunta: pra
quem serve a psicanálise? Assim que me enrolei na toalha, a lembrança havia
desaparecido, e eu fiquei com aquela mesma sensação de quando sonhamos algo
importante, mas não conseguimos nos lembrar. Maldito recalque. O dia foi
passando e eu fiz um esforço enorme para resgatar a lembrança que tinha a ver
com o assunto da crônica que eu queria escrever. De repente lembrei.
Durante
um bom tempo da minha infância, e toda a adolescência, morei numa mesma casa. Quando
nos mudamos pra lá o quintal não era cimentado, nem gramado, de modo que eu
brincava na terra. Lembro que eu gostava muito de cavar aquela terra porque
sempre achava algo enterrado. Nada que tivesse sido enterrado de propósito,
como um tesouro guardado para a posteridade. Eram pedaços de coisas velhas, lascas
de brinquedos quebrados, objetos esquecidos no tempo, encobertos aos poucos
pelos grãos de terra, pela chuva e o vento, pelas memórias. Não eram coisas
minhas, eram de outras crianças que já haviam passado por ali. Quem sabe
naquela época já nem fossem mais crianças. Aqueles cacos viravam brinquedos e
eu gostava de saber que compunha meu mundo fantasioso infantil com coisas
remontadas de histórias alheias.
Mas
o que isso tem a ver com a pergunta: pra quem serve a psicanálise? É que eu só
consigo pensar respostas metafóricas para esta pergunta. Acho chato tentar
responder isso teoricamente. Uma das metáforas é a de costurar palavras. Penso que
cavoucar o quintal em busca de cacos seja outra. Deitados num divã, não
passamos de crianças futucando e remexendo a terra em busca de nossos próprios
pedaços. Ora, mas eu não disse que todas essas lascas de coisas esquecidas eram
de outros? Sim, foi o que eu disse. É preciso remexer a terra, resgatar aquilo
que é do outro, mas que, ao mesmo tempo nos constitui.
A
psicanálise serve para quem não conseguiu deixar pra trás a criança que foi um
dia. Serve muito para aqueles que ainda não saíram da fase dos “por quês”. Quando
começamos a descobrir o mundo, queremos saber os motivos, somos insaciáveis em
busca de respostas que façam com que tudo o que vemos tenha uma explicação. Algumas
pessoas abandonam as perguntas, mas aquelas que não o fazem, depois de um tempo
começam a voltar seus questionamentos para si mesmos. Os que chegam a iniciar
uma análise são os inconformados com as respostas que não atravessaram o limiar
do óbvio demais. Analisandos são aqueles que não se contentam em olhar para a imensidão
do quintal sem ir até lá dar uma mexidinha. E essa mexidinha passa, com os
anos, a ser uma reviravolta em que nada mais será como antes.
Não
são poucas as pessoas que nos questionam sobre a importância de uma análise. E claro
que não é nossa função falar sobre teoria numa entrevista psicanalítica, mas
ah, se naqueles primeiros contatos conseguirmos tomar de alguma forma aquele
sujeito pela mão, travestirmo-nos de criança também e acharmos a primeira lasca
de memória...Se algum desejo de saber adormecido puder ser despertado, o
sujeito não quererá parar até que toda a terra do quintal esteja remexida,
arada, ainda que as mãos estejam sujas constantemente, a ponto de calejar e
sangrar. Criança lá se importa com isso?
A
psicanálise serve, e só serve, para quem nunca parou de perguntar. Pra quem não
aceita qualquer resposta. Serve pra quem tem um “quê” de arqueólogo das
próprias lembranças.
Isloany Machado, 05/02/2016
Lindo!!!!
ResponderExcluirLindo!!!!
ResponderExcluirO texto ficou ótimo, parabéns.
ResponderExcluirTem muita gente revirando o quintal por aí. Excelente texto!
ResponderExcluirTexto fantástico. Parabéns!!!!
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirRevirando quintal.
ResponderExcluirMuito bom!
Revirando quintal.
ResponderExcluirMuito bom!