A
quem vamos pedir proteção? De onde virá o socorro e salvação? Do alto? De
baixo? Virá quando, enfim, adentrarmos o jardim da vida eterna? Nunca acreditei
nisso. O que lamento muito, pois seria reconfortante. De uns dias pra cá, ando
estarrecida com o caos. Não que o caos seja novidade, pelo contrário. Mas há
algo de diferente agora. Até mesmo me deparo com pessoas disputando por
determinar qual seria o maior desastre. Vamos pensar nos dois mais recentes: um
que é nacional e outro, cuja repercussão é, obviamente, nacional. Um, resultado
da ambição e inconsequência típica de um sistema econômico doente, que calha
perfeitamente com as propensões humanas destrutivas. O outro, quase que fico
sem palavras, mas tem a ver com coisas muito maiores, que vêm acontecendo mundialmente
e abrange questões extremistas religiosas, disputa de poder, de território, e o
escambau. As proporções são diferentes.
Ontem me peguei pensando: por que
isso tudo? Pra quê? Imediatamente reli a famosa carta que Einstein escreve para
Freud, na qual faz uma série de questionamentos sobre o porquê da guerra e se
haveria algo que se pudesse fazer para conter os impulsos agressivos da humanidade.
Ao ler tanto a carta de Einstein como a resposta de Freud, me senti como se o
tempo não tivesse passado. Mas quem foi mesmo que disse que tempo é sinônimo de
cura? Os tempos não estão piores. Só vivemos agora mais do mesmo. Ontem, depois
de saber mais sobre o Estado Islâmico, pensei na grande terceira guerra
mundial.
Na
carta, Einstein pergunta: “Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça
de guerra?”. Mas ele não para por aí, segue questionando: “como é possível a
essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a
sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos?”; “como
esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo
extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas?”; “É possível controlar a
evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e
da destrutividade?”. Aqui temos um Einstein exasperado, como qualquer um de
nós, reles mortais, diante do horror.
Eu
sei que não há muito o que fazer, mas reler a resposta de Freud é tentar
colocar um pouco de ordem no caos. Entender o que se passa traz um certo alívio,
pois saber que somos destrutivos, mas não só, pode trazer também algum pingo de
esperança. Freud nos lembra que, apesar de toda a tentativa de abstrações,
sublimações, e invenção da civilização, não podemos nos excluir de uma
animalidade latente. Sendo assim, existe “um princípio geral que os conflitos de interesses entre os
homens são resolvidos pelo uso da violência”. No caso dos homens, reino animal,
família primata, espécie homo sapiens,
“ocorrem também conflitos de opinião que
podem chegar a atingir as mais raras nuanças da abstração e que parecem exigir
alguma outra técnica para sua solução”. Se há conflitos de opinião,
saímos do campo da natureza e entramos no campo da linguagem. Então, a
linguagem não é solução, mas ela permite pensarmos em alguma.
Para Freud, “a comunidade deve manter-se
permanentemente, deve organizar-se, deve estabelecer regulamentos para
antecipar-se ao risco de rebelião e deve instituir autoridades para fazer com
que esses regulamentos – as leis – sejam respeitadas, e para superintender a
execução dos atos legais de violência”. Então as leis, assim como todas as
declarações internacionais de Direitos Humanos, seriam totens que funcionariam
como uma barragem para conter a violência. Ocorre que, lamentavelmente sabemos
serem as barragens estruturas que podem romper. Não é? E a consequência é a lamorragia
de um conteúdo contaminado de ambição, ódio, morte, destruição e, ainda por
cima, mercúrio. Voltemos às leis. Estas, segundo Freud, deveriam “determinar o
grau em que, se a segurança da vida comunal deve ser garantida, cada indivíduo
deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins
violentos. Um estado de equilíbrio dessa espécie, porém, só é concebível
teoricamente. [...] As leis são feitas por e para os membros governantes e
deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de
sujeição”.
Raios, então por que perdi meu tempo fazendo
uma especialização em Direitos Humanos? Foi porque sempre me senti marginal,
minoria, sujeita. Os sujeitos se rebelam, não é mesmo colegas lacanianos? Como lacanianos,
somos todos freudianos e devemos saber que “os membros oprimidos do grupo fazem
constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas
modificações efetuadas nesse sentido – isto é, fazem pressão para passar da
justiça desigual para a justiça igual para todos”. Com isso, chegamos à
Liberdade, Igualdade, Fraternidade! A França é a mãe dessa trindade. A França
abriga o berço dos Direitos Humanos. A França poderia ser considerada o símbolo
da democracia? Acho até estranho que os terroristas não tenham lembrado disso
antes.
Os terroristas. Entidades-mor de Tânatos. Seriam estes sujeitos a
representação da pura destruição? E quanto aos que se explodem para explodir
outros? Não dá nem pra chamar de suicídio. Há algo além da destruição. Segundo a
hipótese freudiana, as pulsões humanas podem ser tanto destrutivas – pulsão agressiva
ou destrutiva –, cujo objetivo é matar, aniquilar, quanto há pulsões que tendem
à preservação, união, chamadas de eróticas, no sentido de Eros, amor. Quando digo que há algo além num ato
terrorista, me refiro à seguinte afirmação de Freud: “Muito raramente uma ação
é obra de um impulso instintual único (que
deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma
ação, há que haver, via de regra, uma combinação desses motivos compostos”.
Isso deve servir também para essa parcela da humanidade que comete atos
terroristas. Um ato dessa ordem contém em si, obviamente, desejo de agressão e
destruição, mas não é só isso. Existem motivos de ordem erótica, idealista, tem
que haver.
As pulsões eróticas representam o esforço de
viver. Mas onde raios está o esforço de viver quando uma criatura se enche de
bombas e se explode no meio de milhares outros? Não estaríamos falando de pura
pulsão de morte? Para Freud, a pulsão, ou como foi traduzido, instinto de morte
“torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é
dirigido para fora, para objetos”. Entretanto, para além do aniquilamento, da
destruição, está também o desejo de preservação, não da própria vida, mas de um
ideal. O ideal de que todo um mundo seja dominado, convertido, tipo Pink e
Cérebro, lembra? Não é nobre, mas megalomaníaco certamente o é.
Freud afirma: “de nada vale tentar eliminar as
inclinações agressivas dos homens”, mas, se não há como eliminar tais impulsos
agressivos, “pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem
encontrar expressão na guerra”. Como seria isso possível então? “Se o
desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação
mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros”. Então Freud
recomenda combater a guerra com amor? Isso não parece absurdamente idealista,
utópico, quase que delirante? Calma, o discurso de Freud não é cravejado de
coraçõezinhos e borboletinhas fofas. Sua teoria nos leva a entender que a saída
seria apostar nos laços: “Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos
emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra”. Laços que, segundo ele,
podem ser de dois tipos: 1. “podem ser relações semelhantes àquelas relativas a
um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual”; 2. “vínculo
emocional o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar
de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas
identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande
escala”. Uma identificação, obviamente, diferente daquela que convoca as
pessoas para a destruição.
Então, surge uma pergunta que parece muito
básica, mas me fez parar pra pensar. O que há no horror e na guerra que faz com
que nos sintamos tão inconformados e, ao mesmo tempo, tão impotentes? A
pergunta original de Freud é: “Por que o senhor [Einstein], eu e tantas outras
pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não a
aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida?”. E a resposta é
tocante: “porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra
põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens
individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua
vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos,
produzidos pelo trabalho da humanidade. [...] Penso que a principal
razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa”.
Sim, mesmo que um dia não queiramos viver mais
e nos atiremos de uma ponte, todos temos o direito à vida. Está na Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Sim, o horror de uma guerra mata pessoas que
estão cheias de planos, grávidas de futuro. Sim, o horror acaba com a nossa
dignidade. Sim, o horror destrói nossa história, nossas construções, e tudo o
que trilhamos enquanto uma civilização. Sim, o horror nos coloca cruamente
diante de nossa impotência.
Para todos os que têm a civilização como marco
de ruptura com uma natureza animalesca, fica difícil engolir a guerra e o
horror, pois vão contra aquilo que nos constitui como sujeitos. A luz no fim do
túnel, para Freud, é pensar que tudo aquilo “que estimula o crescimento da
civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”. Então, qual seria
a melhor resposta contra atos terroristas? Qual seria a melhor solução contra a
iminência de uma grande guerra? Eu, aqui do alto da minha impotência, só
consigo perguntar. E você?
Todas
as citações que faço ao texto freudiano foram retiradas do “Por que a guerra?”, que está no volume
22 das Obras Completas.
Isloany Machado, 15/11/2015
Parabéns Isloany pelo belo texto. Me senti com se estivesse ao seu lado e pudéssemos sentir e compartilhar dos questionamentos sobre questões tão indesejáveis quanto injustificáveis mas sempre presente em nossa História. Deus a abençoe para que continue a escrever estes textos recheado de companheirismo e fraternidade.
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