Você que me lê, não me julgue antes de terminar de
ler o texto. Não deixe que a repulsa que sente pelo suicídio escureça suas
vistas e não permita que pense por outro lado. Lembre-se que numa história
sempre existem dois lados. Há dias ando com uma vontade de escrever sobre
isso...meus dedos estão coçando, mas me falta tempo. Tenho uma vida de dois
meses em meus braços para cuidar, e há dois meses, esta vida é a coisa mais
importante da minha vida.
A vontade
de escrever foi crescendo, crescendo, e hoje não pude mais resistir. Antes vou
dizer de onde veio a vontade. Dias atrás li uma reportagem que contava a
história de um homem, tetraplégico desde que sofreu um acidente de carro, que
combinou com seu irmão mais novo uma forma de deixar esse mundo. Cansado de ser
absolutamente dependente pra tudo, ele pediu ao irmão que acabasse com sua
vida. Mas ocorre que a eutanásia é ilegal e, portanto, se o irmão atendesse seu
pedido, tornar-se-ia um assassino. Mas foi isso o que fez. Ambos tramaram um
falso latrocínio (roubo seguido de morte), no qual o irmão cuidador seria o bandido
a matar o irmão inválido. História difícil de convencer. Que espécie de monstro
roubaria um homem nessas condições? O irmão mais novo, o cuidador, matou o mais
velho, inválido, com vários tiros na cabeça.
Parece
chocante né? Mas quem poderá julgá-lo? E se ele fez isso por amor? Depois de
ler essa história, comovida, me coloquei no lugar tanto de um como de outro. Seria
eu capaz de fazer isso por um irmão? Seria eu capaz de viver tetraplégica? Automaticamente
meus pensamentos me levaram aos suicidas. Uma história de eutanásia como esta
facilmente convenceria a opinião das pessoas sobre a impossibilidade de viver
assim. Talvez ninguém tentasse convencer do contrário alguém que quisesse
morrer, nessas condições. Mas daí pensei: em que isso é diferente do suicídio? Por
que temos tanta dificuldade em lidar com ele?
Se
você ainda não me abandonou, espere. Se você acha o suicídio a coisa mais
absurda do mundo, não vá ainda. Não deixe que a repulsa que este texto pode vir
a causar tome conta de você antes da hora. Pense comigo: você entenderia se a
pessoa que mais ama estivesse tetraplégica e quisesse morrer? Consegue imaginar
a dor que ela deve sentir? Agora tente imaginar o tamanho da dor de existir de
um suicida. Sabia que todas as declarações de Direitos Humanos e,
inclusive nossa Constituição, garantem o direito à vida, mas não dizem nada
sobre o direito à morte? É isso, ninguém tem o direito à morte.
Calma,
não vá ainda. Não saia por aí dizendo que eu sou uma defensora do suicídio. Se você
quer saber, eu já perdi alguém assim. E sabe, logo que recebi a notícia, minha
primeira vontade foi de matá-lo. Pensei no quanto sua atitude foi cruel e egoísta. Já se passaram anos desde que ele se foi e só
agora consigo pensar nisso. Ninguém nunca soube exatamente o porquê. Ele não
deixou nenhum bilhete, nenhuma carta. Agora, anos depois, consigo pensar e
aceitar que deveria haver o direito à morte. Mas, na verdade, o preceito de
direito à vida acaba se tornando um dever. Só agora consigo pensar que a egoísta fui eu.
Sou
psicóloga, mas não me julgue. Eu sei que no Código de Ética da profissão está
bem claro que devemos trabalhar em prol da vida. E eu faço isso todos os dias,
como psicanalista, desde que aqueles que me procuram queiram lutar pela vida. Andei
pensando: em que uma total invalidez física seria diferente de uma dor de
existir tão avassaladora que fizesse com que o sujeito desejasse, com todas as
suas forças, morrer? Quando alguém decide morrer, por que isso é tão insuportável
pra quem fica? A culpa, é claro. Sempre ela.
Nós
nos sentimos culpados porque alguém que amamos decide morrer, como se tudo
dependesse de nós. O que fizemos de errado? Por que nosso amor não foi capaz de
fisgar o outro dos braços pegajosos da morte? Ei, mas e o outro? Calma. Será que
já paramos pra pensar que nem tudo é controlado por nós? Toma essa Ego filho da
puta. Desculpe, me exaltei. É que esse nosso Ego às vezes não entende que
existe algo para além dele que está fora do alcance. Ele acha que pode salvar o
mundo.
Não sei por que me veio à cabeça
agora a cena de um dos filmes do homem aranha em que ele não consegue salvar a mocinha e ela morre. Lembro que quando assisti, quase morri junto e o filme, pra
mim, acabou ali. Poxa, ao menos nos filmes o herói sempre salva a pessoa mais
importante da sua vida, da morte. Bem, na vida real não é assim e temos muita
dificuldade em aceitar isso. Porque isso joga na nossa cara o quanto somos
impotentes diante de uma dor de existir avassaladora. Isso expõe nossas
fraquezas, nossas feridas. Isso faz com que, diante do olhar do outro, nos
sintamos culpados. Lembra que eu já passei por isso? Não, meu caro, não falo só
de teoria.
Aceitar que o outro, amado ou
não, queira morrer, traz uma dor de morte ao nosso Ego. Onde foi que erramos? Mas
e se ele quis morrer sem deixar carta? Te parece absurdo isso enquanto lê esse
texto? E é. A morte é absurda. A morte é íngreme, como diria Manoel de Barros. Você
ainda está aí? Pense então no que se faz com a libido, ou amor, que antes era
dirigido a esse objeto/pessoa e agora está solto. No mar infinito à deriva. Pode
ser que fique à deriva por muito tempo, misturada à dor e culpa. Ah, Ego filho
da puta. Em algum tempo, diferente do tempo ditado pelos manuais de saúde
mental, em que o luto deve durar 15 dias, em algum tempo a libido se orienta
para outros objetos. Talvez a culpa se amorteça, talvez não. Talvez a libido
escorra e se deite sobre o papel, como no meu caso.
Você ainda está aí? Então, por
favor, não pense que estou fazendo apologia ao suicídio. Ao contrário, meu Ego
gosta muito de viver. Só quero me ajudar a entender.
Você ainda está aí? Então não me
julgue.
Isloany Machado, 10 de novembro de
2015.
Por muitas vezes tentei o suicidio. Nao que eu nao o deseje mais. Penso nisso todos os dias mas como imputar a dor da minha morte ao meu filho e netos. Ao contrario das outras pessoas o existir para mim e avassaladoramente doloroso. Beco sem saida...
ResponderExcluirPor muitas vezes tentei o suicidio. Nao que eu nao o deseje mais. Penso nisso todos os dias mas como imputar a dor da minha morte ao meu filho e netos. Ao contrario das outras pessoas o existir para mim e avassaladoramente doloroso. Beco sem saida...
ResponderExcluirConfesso que por muitas vezes pensei sobre isso...se a pessoa não quer viver, porque lutar para que esta viva sofrendo??? Nunca tive coragem de escrever ou falar sobre isso... Parabéns!!!
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