Hoje,
pela terceira vez, fui visitar Vitória. Ela não sabe quem eu sou, nem porque
vou lá visitá-la, mas há algo que me impele e me faz querer vê-la. Eu tenho
milhares de amigos que publicam nas redes sociais fotos e vídeos de cachorros,
tanto os abandonados, os perdidos, os maltratados, como os fofos, lindos e bem
cuidados. Confesso que nem todos me tocam, alguns mais, outros menos, de modo
que minha vida segue sem interferências, sem que eu queira abrir uma ONG para
salvar animais e etc. Trabalho que acho louvável, mas que sei que eu não daria
conta de fazer.
Desde
a infância, eu nunca tive um cachorro pra chamar de meu. Todos os que tive
enquanto morava com meus pais e minha irmã, eram dela. Então, na verdade, a
responsabilidade nunca foi minha de fato. Quando algum de nossos cachorros
adoecia, minha irmã contava as moedas que juntava com os trabalhos que fazia
(venda de doces, aulas de reforço para as colegas, etc), e pagava o tratamento.
Minha irmã sempre foi mais esperta do que eu, que não sabia ganhar dinheiro
nenhum e, portanto, não ajudava em nada. Quando muito, não atrapalhava.
Só
fui ter cachorro depois que casei, porque o marido veio com a cachorra junto. Safira
era o nome dela. Então, mais uma vez, não era uma cachorra pra chamar de só
minha, até porque a preferência dela por ele era mais nítida do que a água mais
límpida da história da humanidade. Assim como de todas as outras cachorras que
tivemos depois. A July foi a segunda. E agora a Pucca, que faz uma festa de
arromba quando ele chega e, pra mim, pouco mais que uma faceiricezinha modesta.
Mesmo que eu lhe dê colo, coloque água e comida frequentemente, coce sua
orelha, e essas coisas que se faz com cachorro, ela não esconde que seu amor
por ele é muito maior. Mas ok, eu sobrevivo.
E
eu disse tudo isso por quê? Ora, pra justificar que Vitória seja uma exceção na
minha vida. Ela virou do avesso uma cena infantil que vivi. Que não poderia
contar aqui, mas somente num divã de analista. O fato é que todos os dias eu
tenho que saber dela. Visito a página de uma das pessoas que a resgatou para saber
como ela está.
Em outro texto eu disse que, pra mim, não há teoria que explique tamanha
crueldade. Mas sabemos que existe sim. Só que, naquele momento, nada poderia
aplacar a angústia que eu sentia diante do Real cruel a que Vitória foi
submetida. Sabemos do que o ser humano é capaz. Estamos de acordo que o humano
não nasce bom e é corrompido pela sociedade, mas que nasce todo pulsional, de
modo que não hesitaria em destruir o outro (qualquer outro) para satisfazer seu
prazer, para gozar. Aos poucos isso vai sendo interditado, pelas leis, pela
moral, pela religião, pela culpa, enfim. E que bom que assim o é, caso
contrário estaríamos na barbárie. Da culpa a gente se livra no divã do
analista.
Mas
o que fizeram com Vitória esfrega na nossa cara – sujeitinhos bem educados, limpinhos
e cheirosos, pagadores de impostos, dízimos e afins – o quão cruel podemos ser.
Mesmo que passemos a vida sem matar uma mosca sequer, há em nós uma espécie de “tesouro”
subterrêneo que pode vir à tona a qualquer momento. Nos toca tanto porque
poderia ser um de nós, poderia ser um de nossos filhos, poderia ser nosso
melhor amigo. E então? Isso é insuportável. Depois de alguns anos de análise
consigo admitir, por exemplo, que todas as vezes em que vejo um motociclista
empinando a moto e fazendo zoeira na rua, desejo do fundo do meu coração que
ele caia. Não precisa morrer, mas que caia e se rale. Demorei muito pra
conseguir dizer isso, mas foi preciso.
Hoje
quando fui visitar Vitória, eu pensava que minha angústia tem a ver com a culpa
que sinto pelo que fizemos com ela. Sim, nós fizemos. Nós humanos. Nós cruéis. E
assim somos. Hoje durante a visita encontrei uma das pessoas que a resgatou. Ela
passava e passava a mão na cabeça da Vitória. Chorei. Não só pela culpa, mas
por acreditar na civilização. Chorei, talvez de alívio, por acreditar que há
mais culpados nesse mundo do que cruéis sem pudores e culpas. A veterinária me
dizia: “Não chore! A gente fica indignado, mas não há o que fazer quanto a isso”.
E ela estava coberta de razão. Só podemos remediar os efeitos de nossa própria
crueldade latente.
Todos
precisamos que Vitória de fato vença, não como um Cristo que precisava morrer
para expiar os pecados, mas que viva para que possamos provar para nós mesmos
que, apesar de nossa crueldade latente, o amor (leia-se libido no sentido
freudiano) que investimos em outrem tenha supremacia.
É
só o que desejo: que Vitória vença para que eu continue acreditando que nem
tudo está perdido.
Isloany Machado, 09/06/2015
P.S.:
Quem quiser ajudar financeiramente, Vitória está sendo tratada na clínica Petit
Bichon, R. Joaquim Murtinho, 1177 - Itanhangá Park, Campo Grande - MS,
79003-020. Fone: (67) 3324-5500. Afinal, o amor é lindo, mas também tem um
custo.
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