Há
muito, muito tempo, abandonei o Cristianismo. Foi desde quando tentaram me
convencer de que era a única verdade. Não posso com verdades únicas, nunca
pude. Posição que não é fácil de ocupar, nem admitir, desde que você viva em um
meio cultural fortemente carregado de toda uma série de crenças cuja origem é
cristã. Mas infelizmente, não há quem me convença dA verdade, seja A verdade
cristã, ou A verdade muçulmana, ou A verdade niilista.
Apesar
de há muito, muito tempo ter abandonado o Cristianismo, o Cristianismo não saiu
de mim. Eu ainda choro assistindo a paixão de Cristo. Eu ainda sinto culpa
quando sinto raiva, ódio. Sim, porque eu também sinto ódio. Quando pensei em
ter um filho, se fosse menino, o primeiro nome que me veio foi Christian. Mas quando
penso no peso das palavras, caio em mim e não poderia chamar meu filho assim. Imagino
a cena: Venha aqui meu pequeno cristão! Você sabe que mamãe te ama né cristãozinho?
Não posso.
Mas
confesso que para mim o Cristianismo teve uma função civilizatória, porque, até
certo ponto, há um quê de altruísta em ser cristão. Apesar de não gostar das
verdades únicas, há verdades em que acredito, verdades que construí, que
certamente tiveram influência do Cristianismo. Uma das coisas é que não posso
causar dor ao outro, não posso roubar, não posso matar. Quem sabe um dia
matasse, se estivesse com muito ódio, mas daí seria consumida eternamente pela
culpa. Isso é cristão. Mas além de ser cristão, há algo que transcende, pois
está presente em outras religiões que não são cristãs. Ou seja, é
civilizatório.
Se
falamos em civilizatório, como não lembrar de Freud com seu Mal-estar na civilização?
Se não houvesse interdição, não poderia haver vida em sociedade. Eu diria mais,
não haveria vida a dois. Imaginem o que seria dos casamentos se matar não fosse
proibido? Mesmo havendo interdição, muitas vezes a pulsão destrutiva fala mais
alto e nos deparamos o tempo todo com tragédias que talvez pudessem ser
evitadas. Seria o Cristianismo uma tentativa de imprimir a culpa para que
possamos viver sem o maldito medo de ser, o tempo todo, destruídos?
O
fato é que eu ainda choro assistindo a paixão de Cristo. E todas as vezes fico
me perguntando como isso pode ser encenado todos os anos e para sempre? Morei numa
cidade que tinha uma encenação famosa da paixão de Cristo. Juntava gente da região
toda, alguns fretavam ônibus para ir assistir. Em quase três anos morando lá,
eu nunca fui. Eu dizia pra mim mesma: ah, eu já sei a história. Mas muitas
pessoas iam todos os anos e continuam indo até hoje. É a mesma história de
sempre. Então por que repeti-la sempre e sempre? Bem, isso também é freudiano.
A repetição. Repetimos para elaborar? Ou seria para realizar novamente aquele
gozo que só a repetição é capaz de nos dar?
No
fundo, no fundo, acho que nunca fui porque tive medo de arrebentar os olhos de
tanto chorar. Porque é a história de um escolhido para ser aquele que pagaria
as contas. Ele tinha que morrer. Ele tinha que morrer? Encenamos ali a destruição
humana. E, ao mesmo tempo, choramos de culpa. Mas ele tinha que morrer! É o que
sempre me disseram. Ao ver a destruição de Jesus, gozamos e sentimos culpa, num
ciclo infinito, que se repete todos os anos. No fundo, no fundo, acho que nunca
fui porque tive medo de gozar. A culpa pode ser admitida, o gozo, jamais.
Mas
se “ele tinha que morrer” – desculpa que criamos para gozar da destruição do
outro – claro que a culpa tinha que ser de alguém. Assim, elegemos o Judas. O filho
da puta que traiu Jesus. Assim malhamos o Judas, todos os anos. Confesso que
nunca tinha pensado numa coisa, até ler Judas,
de Amós Oz. Ora, vejam bem, se Jesus TINHA que morrer para expiar nossos
pecados, Judas fez-lhe um favor! Jesus estava com medo, admitamos. Quem é que
não teria medo de morrer? Ele dizia: “Pai, se possível, livra de mim esse
cálice!”. Caramba, é óbvio que ele não caminhava saltitante de felicidade rumo
à morte! Se não fosse Judas, talvez Jesus não tivesse morrido na cruz, talvez
tivesse escapado. E não sou eu que estou dizendo isso, li em Amós Oz, antes que
me apedrejem.
Gozamos
todos os anos com a repetição da morte terrível de Jesus e quanto à culpa, ah,
a culpa a colocamos em Judas! O gozo é mortífero, a culpa também. Mas o gozo
está trancafiado no mais fundo calabouço dentro de nós. Já a culpa, podemos
manuseá-la usando alguns mecanismos. Entretanto, não nos livramos nem do gozo e
nem da culpa, jamais. Se lançar a culpa em Judas fosse suficiente, não teríamos
a necessidade de repetir e repetir a história. Se culpar Judas fosse eficaz, eu
não choraria assistindo a paixão de Cristo.
Isloany Machado, 04/04/2015
Olá, ISLOANY MACHADO! Obrigado pelo texto.Li-o com prazer e interesse. Entretanto, permita-me observar duas coisas: 01) não creio haver a separação demarcada por você entre 'gozo' e 'culpa', ou seja, a narrativa judaico-cristã é do início ao fim sustentada pelo gozo com a culpa, gozo este sem o qual o Ocidente não existiria (aliás, Freud pontuara em 'Totem e tabu' [1913] que a culpa era um dos elementos constitutivos da identificação ao 'pai da horda' após o assassinato dele); e 02) a dita "paixão de Cristo" é reencenada a cada ano porque o real do gozo com a culpa é, como tal, ineliminável pela própria reencenação, e, pois, impossível de ser "completamente absorvido" pela significação (articulação entre o simbólico e o imaginário). Penso que é preciso, em termos psicanalíticos, ler os acontecimentos valendo-se dos três registros topológicos (real, simbólico e imaginário), sem os quais ficamos a meio caminho... {Abraços!}
ResponderExcluir