Estava
eu zapeando no menu de filmes da Netflix (digo isso sem esperanças de ganhar
uma assinatura vitalícia, tal qual o Sílvio Santos) e passava despretensiosamente
pelas sugestões que diziam “Pra você que assistiu...” quando me deparei com um chamado
Lars and the real girl, traduzido o
título por A garota ideal. Li a sinopse e achei que seria uma comediazinha boa
de ver quando não se quer pensar em mais nada. Foi o melhor engano dos últimos
tempos. Explico já o motivo.
Lars
é um rapaz de 27 anos que mora nos fundos da casa do irmão e da cunhada, que
está esperando um bebê. O casal tenta fazer com que ele participe mais das
atividades em família, como fazer refeições juntos, mas Lars se recusa para
viver recluso em seu canto, sozinho. Ele tem um trabalho para o qual vai todos
os dias, frequenta a igreja, mas não sai de casa pra mais nada. Um dia, Lars
comunica ao irmão e à cunhada, que está com visita: uma moça estrangeira, que
está na cadeira de rodas e que, por serem ambos religiosos, não ficaria bem se
ela dormisse com ele. Prontamente a cunhada diz que ela pode dormir na casa
deles.
Todos
vão jantar em família, mas há algo de diferente em Bianca, a namorada
estrangeira: ela é uma boneca de silicone, destas utilizadas para fins sexuais.
Imediatamente o irmão diz à esposa que
Lars está maluco e que precisam interná-lo, já que ele age como se Bianca fosse
uma garota real. A cena é hilária e ao mesmo tempo pungente. No final da noite,
quando Lars se despede da namorada no quarto rosa, o que fora de sua mãe, a
cunhada tem uma brilhante ideia ao dizer que Bianca não lhe parece bem, pode
estar exausta da viagem longa e sugere que a levem a uma médica que conhecem no
dia seguinte.
A
médica, que também tem uma formação em psicologia, age de acordo com o que
Bianca é para Lars: uma garota real. A conduta profissional desta mulher foi o
que mais me tocou neste filme que, apesar de ser ficção, foi uma excelente aula
de ética, de psicopatologia, e de muito mais. A doutora diz que Bianca tem uma
doença e que precisará fazer um acompanhamento e monitoramento semanal com ela.
É o jeito que encontra de fazer com que Lars vá até ela todas as semanas. Depois
da consulta, a família está ansiosa para saber como podem proceder. Interná-lo?
Não, diz a médica. “Eu não acho que ele seja psicótico, acho que é uma situação
temporária que serve para aliviar de algum conflito. Ele tem um delírio”. O irmão
exaspera-se e quer saber quando isso acabará. Não sabemos, diz a médica. Bianca
não é real, diz o irmão. Mas sabiamente a médica diz, “é claro que é, ela está
ali com ele na sala de espera”. Foi o mesmo que dizer “sim, para Lars ela é
real e é isso o que importa”. Pede que colaborem com Lars em tudo o que ele
precisar, agindo com a Bianca real. Em tempos de anti-psicóticos, ansiolíticos,
estabilizadores de humor e etc, quem iria imaginar que a recomendação fosse suportar
o delírio de Lars?
O
resultado é surpreendente. Até mesmo o irmão, que foi o mais resistente, passa
a colaborar e agir com uma Bianca real. O mesmo acontece com os amigos do
trabalho, os membros da igreja que frequenta, e as demais pessoas da pequena
cidade. Bianca arranja um trabalho de manequim de loja, além de professora numa
creche e voluntária para os menos favorecidos. Ela se torna uma cidadã. Semanalmente
Lars a leva até a doutora Dagmar para monitorar seu estado de saúde. Depois dos
exames, Bianca precisa de repouso, momento em que a médica e Lars “conversam”. Dagmar
precisa saber do histórico de Bianca, e é Lars quem conta.
A
mãe morreu no parto de Bianca. Curiosamente foi o mesmo que ocorreu com Lars. Há
mais outros pontos na história que nos dão a sensação de “Bingo! Bianca é Lars!”.
Há momentos de extrema angústia durante as consultas com o fato, por exemplo,
de que se aproxima a data do parto da cunhada. Lars provavelmente tem medo que
a cunhada morra. Com o decorrer do tempo, Lars arranja brigas com Bianca, diz à
médica que a pediu em casamento e ela não aceitou, enfim, começa um processo de
separação.
Um
dia, aos berros, Lars acorda todos na casa dizendo que Bianca está desmaiada. Chamam
a ambulância e a levam ao hospital, doutora Dagmar acompanha e vem a notícia:
Bianca está morrendo. Os familiares não entendem e a médica explica: é ele quem
decide. Ele a pôs doente, ele a está matando. E nós que estamos assistindo, nos
emocionamos com a dor da separação de Lars, que cuida de Bianca até seu último
minuto de vida, contando com a ajuda dos parentes e dos amigos. A dor é real,
Bianca é real, e a morte também o é. Só depois de tudo isso ele pode permitir a
aproximação de uma outra moça, não podemos dizer real, porque Bianca também o
era, mas de carne e osso.
E
então, um filme que tinha a maior cara de comédia fim de noite, acabou sendo
uma emocionante aula de psicopatologia e ética. Tive que assistir duas vezes.
Isloany Machado, 24/03/2015
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