
A
pergunta “sou homem ou sou mulher?” nos
remete à clássica questão histérica, sobre que posição o sujeito ocupa na
partilha dos sexos. Ora, bastaria despirmos um sujeito para determinar qual seu
verdadeiro sexo? A resposta parece
óbvia, e foi exatamente a este tipo de exame que submeteram Herculine Barbin,
jovem de 25 anos que escreve suas memórias por acreditar que sua vida acabará
em breve. O relato se passa no século XIX e conta a história de uma pessoa que
descobre ser hermafrodita, mas só o faz depois dos vinte anos de idade.
Desde
o final da infância tinha um distanciamento do mundo, como se houvesse já
compreendido que viveria nele como um estrangeiro. Com a morte do pai, quando
Herculine ainda era criança, a mãe ficou sem condições financeiras e a filha foi
admitida num asilo que tratava doentes mentais, sendo criada junto com crianças
órfãs. O fato de ter uma mãe viva a colocava num lugar privilegiado para as
demais crianças que ali viviam. Certa feita, uma delas censurou-a por estar
compartilhando de um pão que não havia sido feito para ela. Tempos depois foi
para um convento onde participaria da vida de meninas ricas e nobres.
Herculine, apesar da evidente diferença social que havia entre si e as outras
meninas, se destacava nos estudos, impressionando as professoras. Neste lugar
apaixona-se pela primeira vez.
Quando
volta a morar com a mãe na casa de seus patrões, um pároco da cidade sugere que
ela se dedique ao ensino e, autorizado por ela, divide a ideia com sua mãe e
seu benfeitor. A ideia a desagradava, pois tinha por essa profissão uma antipatia
irracional e profunda, e acreditava merecer coisa melhor. Neste período começa
a se evidenciar a enorme distância física que havia entre ela e as outras
meninas. Possuía muitos pelos no rosto e nos braços, fato que era motivo de
chacota. Apesar da descrição do quanto os traços físicos eram masculinos, ela
coloca uma oposição ao dizer que apesar disso nascera para amar: “todas as
faculdades de minha alma estavam voltadas para o amor; um coração ardente
escondia-se sob minha aparência fria e quase indiferente”. Herculine faz uma
oposição entre masculino e feminino, dizendo que o amor é coisa das almas
femininas.
Com a passagem do tempo e a
acentuação das características físicas masculinas, a angústia de Herculine
aumenta. Finaliza o curso superior com as melhores notas e consegue um emprego
como professora adjunta em um internato. Foi acolhida pela família proprietária
como se fosse uma filha e passaria a gerir a instituição juntamente com Sara,
uma das moças.
Na
relação com Sara, inicia-se um envolvimento: “do fundo da minha alma, eu te amo
como nunca amei ninguém na vida. Mas não sei o que está acontecendo comigo. E
sinto que essa afeição não pode mais me satisfazer. Para isso preciso de toda a
tua vida!”. Sara não recusa esse amor, sofre com isso, mas se tornam amantes.
Pouco tempo depois, Herculine começa
a sentir dores físicas tão fortes que a impediam até mesmo de gritar. A
situação vai ficando cada vez mais insustentável e ela sai de férias com a
decisão de buscar ajuda para retificar seu registro civil. Segue o trecho de um
dos relatórios médicos:
“Dos
fatos acima, o que concluiremos nós? Alexina seria uma mulher? Ela tem uma
vulva, grandes lábios, e uma uretra feminina que independem de uma espécie de
pênis imperfurado, não seria isso um clitóris monstruosamente desenvolvido?
Existe uma vagina, bem curta na verdade, e muito estreita, mas enfim, o que poderia
ser além de uma vagina? Ela tem atributos totalmente femininos, é verdade, mas
nunca menstruou; externamente, seu corpo é masculino, e minhas explorações não
me levaram a encontrar o útero. Seus gostos, suas inclinações a levam em
direção às mulheres. À noite, as sensações voluptuosas são seguidas de um
escoamento espermático; seu lençol é manchado e essas manchas têm um aspecto
duro. E para finalizar, podemos encontrar os corpos ovoides e o cordão dos
vasos espermáticos num escroto dividido. Eis os verdadeiros testemunhos do
sexo; podemos portanto concluir e dizer: Alexina é um homem, hermafrodita sem
dúvida, mas com evidente predominância do sexo masculino”.
Restava
à ciência agora reparar o erro. Herculine diz: “Mais tarde eu me arrependeria
amargamente daquilo que então eu considerava um imperioso dever. O mundo logo
me ensinaria que eu tinha cometido um ato de fraqueza e estupidez, e me puniria
cruelmente por isso”.
O saber médico determina a
retificação nos registros civis, afirmando que ela pertencia agora ao sexo
masculino e teria seu nome modificado. “Tudo estava feito. A partir de agora, o
estado civil me obrigaria a fazer parte daquela metade da raça humana a que
chamamos de sexo forte”.
Uma
mudança de nome e registro civil. Isso basta para determinar qual a posição de
um sujeito? Antes de saber de sua condição hermafrodita, Herculine já se sentia
como alguém sem lugar, um estrangeiro. Separados da natureza pelo significante,
não somos todos nós estrangeiros nessa pátria da certeza anatômica? Se antes
Herculine era um estrangeiro por pertencer ao mundo dos significantes, após a
busca por retificação que culminou em uma decisão judicial de torná-lo
pertencente ao sexo masculino, ele se torna um exilado. Sobretudo porque,
devido ao escândalo que esta mudança significou, ele perde o amor vivido com a
mulher que tanto amava.
O
fato de ter, anatomicamente, um “terceiro sexo”, nem masculino e nem feminino,
colocou Herculine numa posição de estrangeiro, desde pequeno. Nos anos que se
seguiram à mudança de seu registro, a morte passou a ser a possibilidade de
finalizar a angústia de seu isolamento. Ciente de que a medicina utilizará seu
corpo para estudos científicos, pede em seus escritos que eles analisem também todas
as dores que queimaram e devoraram esse coração até suas últimas fibras. Alguns anos depois, aos 30 anos, comete
suicídio.
Independentemente
da anatomia, o amor fazia com que se sentisse em casa. Será que o peso da
nomeação foi o que levou Herculine à morte? Foi a expatriação sofrida? Ou terá
sido a perda do amor? Não há como saber esta resposta, pois não se trata de um
caso clínico, mas lembremo-nos do último pedido desse sujeito: “peço que
analisem todas as dores que queimaram esse coração até suas últimas fibras”. Ao
final do relato de Herculine, há vários arquivos dentre relatórios médicos e
jurídicos, então, mesmo que a história tenha se passado anteriormente aos
escritos psicanalíticos de Freud, como teria sido um relatório feito por este
autor, caso fossem contemporâneos?
RELATÓRIO DE FREUD
Prezados
senhores,
Devido
ao sigilo imposto por meu ofício, direi apenas algumas poucas palavras. Desde
nossa teoria da sexualidade, é sabido que as opiniões populares admitem que o
ser humano ou é homem ou é mulher. A ciência, porém, conhece
casos em que os caracteres sexuais parecem confusos e é portanto difícil
determinar o sexo, antes de mais nada no campo anatômico. A genitália dessas
pessoas combina caracteres masculinos e femininos (hermafroditismo). Assim me
parece ser o caso de Herculine, exatamente como afirmam os relatórios médicos.
Mas
mesmo na anatomia, até aqueles que são “homens” ou “mulheres”, não excluem, em sua constituição física, elementos
do sexo oposto. Certo grau de hermafroditismo anatômico constitui a norma. A
concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de
uma predisposição originariamente bissexual. Minha opinião teórica é de que
seja possível transpor tal concepção da anatomia para o campo psíquico, em que
teríamos, então, um hermafroditismo
psíquico.
Independente
do hermafroditismo somático de Herculine, seria ela uma invertida, já que foi
criada como mulher e seus objetos sexuais sempre foram mulheres? Em seu relato
autobiográfico, é evidente a culpa que sentia por se apaixonar por Sara e
trair, assim, a confiança da mãe da moça, que a havia acolhido como uma filha.
Ao mesmo tempo em que tinha uma “alma voltada para o amor”, delicada e
feminina, ocupava um lugar masculino na relação amorosa, pois a moça era objeto
de seu encantamento, chegando a se sentir sufocada às vezes.
Em
minha clínica da histeria, pude elaborar que os sintomas histéricos são a
expressão, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por
outro lado, de uma feminina. A natureza bissexual dos sintomas histéricos, que
pode ser demonstrada em numerosos casos, constitui uma interessante confirmação
da minha concepção de que, na análise dos psiconeuróticos, se evidencia de modo
especialmente claro a pressuposta exigência de uma disposição bissexual inata
no homem.
Neste
caso, não se trata de dissecar, compreender, averiguar e devolver-lhe seu
verdadeiro sexo, mas antes, saber que as questões dos sujeitos vão muito além
da anatomia. Sobre o inconsciente, sabemos que não há nesse sistema lugar para
negação, dúvida ou quaisquer graus de certeza. Característica que chamamos de
isenção de contradição mútua. Ao mesmo tempo, os processos do inconsciente não
são ordenados temporalmente e podemos substituir a realidade externa pela
realidade psíquica.
Deste
modo, concluo meu relatório dizendo que importa mais saber para onde aponta o
desejo de Herculine. O verdadeiro sexo
anatômico, não pode ter relevância maior do que o posicionamento desse sujeito
diante de sua realidade psíquica e na partilha dos sexos.
S. Freud
Quando
falamos de sexualidades, não diferenciamos homens ou mulheres a partir da anatomia, nem tampouco partindo de suas
escolhas de objeto. Segundo Lacan, não haveria nada no psiquismo “pelo que o
sujeito se pudesse situar com ser de macho ou ser de fêmea” (1964/1988, p.
194). Além disso, “as vias do que se deve fazer como homem ou como mulher são
inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro.
[...] o que se deve fazer como homem ou como mulher, o ser humano tem sempre
que aprender, peça por peça, do Outro. [...] A sexualidade se instaura no campo
do sujeito por uma via que é a da falta” (p. 194). Homens ou mulheres, somos
sempre seres faltantes.
Só
há uma certeza: seja nas escolhas de objeto sexual, seja no real do corpo de um
hermafrodita, o sexo não se define pela anatomia. O sexo não se define no
inconsciente, não se é homem ou mulher.
Isso é o que menos importa, se é que importa. Os seres transitam e transam
entre uma posição e outra, e o que importa a nós psicanalistas é ouvir o
sujeito com suas questões, com sua sexualidade que, como afirmou Lacan, é
definida pela falta.
FOUCAULT,
M. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro: F. Alves,
1982.
FREUD,
S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro:
Imago, 1905/2006.
FREUD,
S. O inconsciente. In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1915/2006.
LACAN,
J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio
de Janeiro: Zahar, 1964/1988.
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