PREFÁCIO
Por Maria Anita Carneiro Ribeiro
Psicanalista
Isloany
Machado é uma despensadora que com
sua pena, ou melhor, com seu teclado,
avessa o cotidiano e o expõe com o frescor de uma prosa num bar com uma
amiga, com o gosto de uma confidência sussurrada, com o calor e o perfume do
Planalto Central e da poesia de Manoel de Barros.
Isloany
é despretensiosa, e por isto mesmo, o que ela faz é precioso. Diz que não sabe escrever
teoria – mas fez Mestrado. Apesar do que diz, às vezes se arrisca a escrever
sobre a teoria e a técnica da psicanálise. Mas bom mesmo é quando ela relaxa e
se deixa atravessar pelos mistérios da Caverna do Dragão, descoberta por Freud,
e que nós chamamos de inconsciente.
É
então que sua prosa se torna mais saltitante e saborosa, menina sapeca e mulher
sabida, recordando causos da infância, nos apresentando, com o entusiasmo de
quem acabou de descobri-los, livros célebres, refletindo sobre detalhes, ou
apenas resmungando.
Na
sua Apresentação (incompleta), nos
comunica com elegância econômica, e por isto mesmo mais tocante, a origem de
seu escrevinhar: a dor de uma perda insuportável, de um companheiro de infância
que escolheu cair fora da vida. Diz-nos então que “de um grito de dor, a escrita tornou-se um novo amor.” Mas não só,
pois no desfiar das palavras, o amor perdido transforma-se em lembrança, junto
com os significantes que “compõem” a
autora: sopa, tigela, dias quentes da infância. Lindo trabalho de luto, em que
“as palavras lambem suas feridas”.
Neste
sentido, o livro é o relato de uma travessia, da dor insuportável à miséria
comum, evocada por Freud. Só que a paisagem que se desenrola ao longo desta
travessia não é de miséria, e muito menos comum. Claro está que a temática da
angústia retorna, recorrente, repetitiva: angústia de Graciliano, de Tchekhov,
do aposentado no ônibus, da moça pintada que, sem saber, procura o amor...E não
poderia deixar de ser assim – é este fundo bem verdadeiro de angústia que faz
brilhar o riso, a piada, a brincadeira, a recordação, o entusiasmo.
Comecemos
pela Declaração Universal dos Avessos
Humanos, um libelo enérgico em defesa das diferenças, em nome do desejo.
Mas com direito a artigos bem peculiares, como o 7º, que resume de forma
hilária e inesperada, porém eficaz, a interdição do incesto: “Todos são desiguais perante a lei paterna e
não têm direito, sem qualquer distinção, de bulir com a mãe da horda primeva.”
E o leitor descobre, ao mesmo tempo, que existe uma mãe da horda primeva
(sempre desconfiei), e que bulir com a
mãe é a própria essência do desejo incestuoso.
Do
mesmo modo, o artigo 13, item 1, preconiza que: “Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção, ainda que sofra de
conversão histérica.” E de súbito se torna óbvio que não há nada mais
movimentado e buliçoso do que uma grande paralisia histérica.
Ao
falar dos livros que lê e ama, Isloany deles se apossa e os torna pretexto para
uma conversa íntima com a autora (Água Viva, de Clarice Lispector) ou
para refletir sobre um tema; o feminino, por exemplo (Balzac e Flaubert). Mas é
claro que não o poderia fazer de uma forma banal.
Balzac,
por exemplo, é um velho conhecido, um “daqueles
homens que veem beleza nas mulheres de semblante melancólico”. A mesma
intimidade aparece na análise de Madame Bovary: a autora não gosta de
Rodolfo, um pilantra “que conhece bem a
alma feminina”, e é com deselegância que o safado “manda essa” para Ema, ao falar das almas atormentadas. É a isto que chamo de se apossar do texto: é
se intrometer nele, dele participar, mais do que usá-lo como ilustração de num
ponto de vista. Afinal, Balzac é melhor do que Prozac, embora a autora prefira
a desmedida da Ema de Flaubert.
Caverna
do Dragão que é o inconsciente, as memórias da infância se misturam a livros
infantis e ao desenho animado Madagascar. Com A Bolsa Amarela, de Lygia
Bojunga, nos deparamos com “uma bela
metáfora do amor” no encontro entre a Guarda-Chuva, que não queria ser
apenas bonitinha, e o galo Afonso, com seu medo de voar. No filme infantil,
Madagascar, a autora descobre um ensaio sobre o desejo, e conclui; “um sujeito desejante é um viajante, que está
sempre de malas prontas para uma nova partida”.
Sim,
Isloany não foge ao óbvio também. Tem o despudor de se mostrar por inteira, com
sua força e suas fraquezas, dor e alegria entusiasmada. Alguns dos textos
parecem bem simples, quase banais, mas nunca verdadeiramente o são porque
traduzem o esforço da autora de “virar
bocó”. Lacaniana verde, e não roxa,
que é uma cor muito pesada, e inspirada, ou melhor, inspiramada por Manoel de Barros, eleva ser bocó à dignidade de uma posição ética: “toda palavra torta me conserta e me concerta de araras”.
Ser
bocó é tomar o mundo pelo avesso (a tal da realidade psíquica), é se deixar
desarrumar e consertar pelas palavras (a tal da psicanálise). Ser bocó é ser
sujeito do desejo, afetado pela angústia e é ser também o objeto que causa
desejo e angustia: ”Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.”
Ser
bocó é tudo. Sejamos!
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