Não fazia ainda um mês que ele havia partido,
quando fui visitá-lo em sua nova morada. Eu que sou avessa a cemitérios, a
qualquer coisa que me lembre a morte, ou que vagamente recorde que haverá um
fim, não consegui resistir ao impulso de ir saber onde é que estaria ele daqui
até o sempre. E quando cheguei, um obscuro respeito colou-se à minha face
diante de tantos que ali estavam. Percebi a contragosto que o movimento desses
lugares não cessa, sempre haverá um ou outro que partirá, a qualquer hora do
dia ou da noite, mesmo que os carros continuem andando, correndo, buzinando,
xingando, atropelando, morrendo lá fora. Quando entrei, senti que o tempo estava
parado para algumas pessoas que se despediam aqui e ali de alguém que, cedo ou
tarde, partia. Agora me parece que partidas assim sempre são adiantadas demais,
é sempre cedo. Sempre há algo que não foi dito, uma última conversa que pudesse
dizer tudo (doce ilusão).
Iniciei minha caminhada para chegar até ele,
com o novo endereço, bem mais curto do que aquele da Rua Piratininga em que o
encontrei em 2012. Agora ele está entre os Pinheiros. Andei, andei, andei, e
como é constrangedor pisar na grama alimentada por aqueles que dão sua última
contribuição à natureza. Eu não o encontrava, pois tinha que achá-lo entre
números desordenados. Avistei um trabalhador local e perguntei: “O senhor sabe
onde está Manoel de Barros?”. E ele me disse: “Que número é?”. Saímos em busca
do número, e ele, pela força e brutalidade do hábito, pisava sem
constrangimento, com suas botas embarreadas, sobre cada um deles. Enquanto
andávamos pensei que ao menos poderíamos escolher que número gostaríamos de
habitar o sempre. Mas minha cabeça ficou completamente oca tentando escolher
que número eu desejaria habitar. Podia ter a ver com algo da nossa história,
por exemplo? Eu gosto do número cem, porque me faz lembrar Cem anos de solidão.
Pronto, queria escolher o número cem. Mas não sou eu que escolho, e quando me
dei conta disso, olhei para toda a extensão do local, que me pareceu infinita,
e fui invadida por uma imensidão de sozinhez.
Não encontrávamos. Ele me perguntou: “Faz muito
tempo que enterrou?”. Dia 13 de novembro, respondi. Eu olhava e olhava,
buscando uma grama recém nascida, uma terra ainda meio remexida, mas por ali
tudo parecia bem uniforme.
Quando finalmente achamos, ele olhou a placa e
me disse: “É esse, mas o nome dele ainda não está aqui. Se a senhora quiser que
coloca tem que pedir na secretaria”. E de repende eu fui alçada ao status de
alguém da família. Lá se foi o coveiro, com suas pisaduras sobre a grama,
sumiu-se em seu ofício de cuidar e esperar o pó reintegrar a última forma
humana. O nome dele não estava lá, encontrei somente o de seus pais: Alice e
João Venceslau. Era só pedir pra colocar na secretaria? Me fiz de parente, mas
recusei a ideia de colocar seu nome ali. Foi estranhamente confortador pensar
que ele ainda não estava. De repente podia ter saído remexendo a terra à
procura de matéria de poesia. Mesmo assim fiquei. Percebi que a sua grama já
estava bem estabelecida e bem perto dele uma fila de árvores dava abrigo aos
diversos cantos de passarinhos. Um silêncio...somente povoado por esses cantos
e pelo vento com seu murmúrio surdo.
Fiquei, fiquei, fiquei. Os olhos secos. Li um
poema dele, contando sobre sua namorada indiana que passava unguento, passava
unguento, para a arte do amor carnal. Não pude conter o riso. Meu coração
estava leve e enverdecido pela grama de sua nova morada, tão uniforme já. Não
sei por que, achei que estaria ralinha. Mas, apesar da sensação de tempo
estático, notei que ele não para. Me lembrei de quando meu avô materno foi
embora e da sensação que tive quando foi posto em seu vagão, sob a primeira
colherada de terra. Pensei nas palavras todas que herdei dele através da minha
mãe e de minhas tias. Escrevi na minha agenda de menina:
Nossa condição é triste, lamentável.
Nossa condição é gelada e roxa.
Nossa condição é apertada e quente.
Nossa condição é escura.
Nossa condição é memorável.
Nossa condição é esquecida...
Eu
ainda não sabia que as palavras são de matéria indissolúvel no tempo. Por isso,
palavro loucamente, pra me saber eterna. Depois de não sei quanto tempo,
levantei para ir embora. Não falei com ele, não chorei. Só olhei a imensidão de
minha sozinhez. Ainda na saída, olhei pra trás em despedida, mas fui invadida
pela lembrança de seu riso do dia em que fui a sua casa conhecê-lo
pessoalmente, em carne e osso e muita emoção. E enquanto saía, eu só pensava
que as palavras são indissolúveis no tempo...
Isloany Machado, 08 de dezembro de 2014.
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