Sempre que tenho tempo livre, fico
pensando bobeira. E isso é tão bom! Então estava pensando no ofício de ser
psicanalista, algo que sempre penso porque escuto muitas coisas na clínica. E
eu gosto de ouvir, ah, como eu gosto. Tantas e tantas histórias. E na análise é
um lugar em que se pode falar bobeiras, todas as que pensamos e muitas vezes
não conseguimos e nem podemos dizer pra qualquer um. Quando a gente cresce, o
coração fica duro e as falas precisam de razão. Não se pode dizer besteiras, ou
se corre o risco de parecer idiota, quem sabe infantil.
Na
análise, não só podemos como devemos buscar o “criançamento das palavras”, lá
onde elas ainda “urinam na perna” [1]. Por que será que quando crescemos a
língua também vai ficando dura? Cheia de não me toques e não se podes? Às vezes
meu saco enche. Quando estou perto do meu pai, falo com a língua dura, porque
se falo besteira ele me corrige. Poxa pai, que saco! Quero falar do jeito que
eu quiser. Eu cresci, mas ainda sou criança. E quero ser pra sempre assim, pra
não ficar com o coração duro, pra nunca parar de perguntar. Tem gente que tem
vergonha de perguntar, acha que já tem que saber tudo.
Quando
a gente cresce, para de perguntar, fica com a língua e o coração duros. Por isso
escolhi ser psicanalista, porque não quero ficar dura nunca. Porque pra ser
psicanalista tem que ser criança, ouvir como criança, sentir como criança, e
fazer perguntas, como criança. Mas não são poucas, são muitas perguntas. É como
ouvi esses dias, de uma criança: “parece que eu engoli um ponto de
interrogação”. É assim que eu me sinto todos os dias: como se tivesse engolido
um ponto de interrogação. E mesmo nos dias duros, em que me dou conta de que
não sou mais criança, no café da manhã engulo um ponto de interrogação e viro
criança de novo. Como o pó de pirlimpimpim, como a pílula de nanicolina, como o
bagulhinho que Alice come na toca do coelho pra ficar pequena.
Por
falar em Alice, esses dias vi um coelho branco saindo do meio de um matinho, do
nada, à noite. Do mesmo jeito que apareceu, desapareceu. Olhei pro meu marido e
perguntei: “você, por acaso, viu aquele coelho que acabou de aparecer ali?”.
Fiquei aliviada quando ele disse que sim, pois ainda não cheguei ao grau de
alucinamento infantílico. Não paro de me perguntar “quem sou eu?”, “o que eu
quero?”, “o que o Outro quer de mim?”, “será que o outro quer?”, “de que desejo
eu vim e para que desejo eu vou?”. E minhas perguntas escorrem pelas mãos e
meus pontos de interrogação caminham lesmamente para alguns outros.
Enfim,
nós psicanalistas usamos nossas perguntas como ferramentas de trabalho. A
pergunta é sempre sobre o desejo. E nós enquanto analisantes fazemos análise
para ouvirmos nossas próprias perguntas, invertidas. Mas só quem é criança sabe
que fazer pergunta é necessário para viver, caso contrário adormecemos,
adormesomos. Eu descobri que só gosto de gente bocó, que não tem medo de ficar
acordada, gente acordecida. Às vezes algum paciente, antes de deitar no divã,
diz: “hoje eu vou dormir nesse divã, estou com muito sono”. E eu, mais que
depressa, digo: Não vai dormir nada, trate de falar!
Falar,
falar, falar, até amole-ser a língua,
o coração, e a dureza da vida. É como se diz: “Rapadura é doce, mas não é mole!”.
E eu sempre fiquei pensando: mas se rapa-dura
é dura, como fazê-la rapamole? Vem ser bocó comigo, vem?
[1] Manoel de Barros
Isloany
Machado, 28 de outubro de 2014.
Simplesmente perfeito!
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