Meu silêncio me bastava até hoje de
manhã. Eu estava em silêncio porque não gosto de brigaiada político-partidária.
Eu estava em silêncio porque achei que depois do dia das eleições, as pessoas
parariam de fazer ataques pessoais aos candidatos à presidência do nosso País,
assim como sempre ocorreu em todas as eleições desde que me entendo por gente. Por
falar em “desde que me entendo por gente”, eu nasci no ano de 1984. Ano que dá
nome a um famoso livro de George Orwell e conta a história de uma sociedade
vigiada, ditatorial, em que um Big
Brother dava as ordens, em que não havia democracia.
Mas o ano em que eu
nasci também tem uma importância nacional, pois foi o ano em que o regime
ditatorial militar caiu do poder. Desde que eu nasci, vivemos num país que
adotou e briga todos os dias por manter, acima de tudo, a democracia. Às vezes
a gente se acostuma com as coisas boas e esquece que pode perdê-las. Assim
estava eu, filha de 1984, até hoje de manhã. Achando que a democracia é um bem
conquistado pelo povo e que jamais poderia ser perdido.
E afinal, porra, o que
aconteceu hoje de manhã? Hoje de manhã eu descobri que tem pessoas saindo nas
ruas para pedir “intervenção militar” depois de uma eleição feita
democraticamente. Eu estava em silêncio até saber disso, mas não posso mais me
calar. Não posso porque sou formada em Direitos Humanos; não posso porque
estudei história na escola e ainda tenho na memória as cenas (impressas nos
livros) da última vez em que pediram uma intervenção militar em nosso país, e
de fato eu estudei, não colei só pra passar de ano. Não posso mais me calar
porque agora não se trata mais de defender tal ou tal candidato; não posso
guardar silêncio porque agora passaram dos limites da insanidade, da
ignorância, da falta de memória, da vontade de repetir e repetir, como faz
sempre uma massa acéfala, norteada puramente pela pulsão. Não posso me calar
porque sou psicanalista e não se enganem os engraçadinhos que dizem que a
psicanálise se restringe ao indivíduo. Uma ova! A Psicanálise tem todo um
estudo sobre esse puto mal-estar social. Acho que tenho motivos suficientes
para dizer porque não pude mais ficar em silêncio desde hoje de manhã.
Então, esse texto é
para todos os que estão pedindo intervenção militar. Queridos, vocês sabem do
que estão falando? Têm certeza de que não faltaram as aulas de história para ir
jogar bolinha de gude? Vocês se lembram do que causou uma intervenção militar
entre os anos de 1964 a 1984? Ah, não eram nascidos? Colaram na prova? Odiavam estudar
história? O professor era chato? Ah, que pena...Pois eu me lembro, porque não colei
na prova. Você que está aí xingando nordestinos, você que está falando mal dos
bolsas-qualquer coisa instituídos para tirar a população da linha da miséria,
dói seu bolso, é? Você gostaria que pobre se explodisse, porque se ele não tem
as coisas ou não está onde você está, é porque não se esforçou o suficiente,
né? Ah tá. Você que chora em frente a tevê quando assiste filme sobre o
nazismo, o fascismo, a vida de Jesus, e etc, sabia que pedir intervenção
militar é o mesmo que implantar um regime totalitário aqui? Sabia que quando
você diz que uma eleição democrática, que elegeu aquele escolhido pela maioria,
dá continuidade a um regime ditatorial ou socialista, está dizendo que a
vontade do povo não é soberana? Sabia que durante 20 anos uma intervenção
militar destruiu nossa economia e fez da tortura uma prática política? E que
essa intervençãozinha de 20 anos fez com que muitos problemas sociais se
agravassem, marginalizando milhões de brasileiros? E que quem sabe se não fosse
isso, hoje não precisaríamos ter programas de bolsa isso ou aquilo para tentar
amenizar os estragos causados pela última intervenção militar? Sabia que quando
abre sua boca, escreve seu pequeno cartaz pequeno burguês dizendo “intervenção
militar já!” porque seu pequeno bolso está doendo por causa das pequenas bolsas,
está abrindo mão de boa parte de seu direito de fazer escolhas?
Meu querido corpo
massificado e manipulado que pede militarismo de volta ao poder, volte aos
livros sobre a ditadura militar e leia: “O caminho escolhido era democrático. O
governo encaminhava ao Congresso suas sugestões, que, depois, seriam aprovadas
pela votação dos parlamentares eleitos pelo povo. As elites sociais,
acostumadas a jamais perder privilégios, responderam violentamente. Desencadeou-se
uma campanha alarmista que tachava o governo de demagógico, ditatorial,
sindicalista ou comunizante”. (CHIAVENATO, 1994)
Aos que leram isso e
tiveram uma leve sensação de dejá-vu,
é isso mesmo. Nos bancos da universidade de psicologia ouvi uma frase que nunca
esqueci: “A história se repete.” Nós estudantes achávamos graça e até fizemos
disso um chavão da faculdade. Mas hoje de manhã a frase caiu no meu colo e
quase não consegui me levantar. Estou vendo a história se repetir e, incrédula,
achei que minha surpresa ficou sem voz. Mas de tudo que já estudei sobre
Direitos Humanos, Cidadania, Psicanálise, tirei forças para levantar e quebrar
o silêncio. Fui estudar pra poder escrever isso e tenho que transcrever mais
algumas coisas:
“Um sentimento domina nossa época: o
sentimento de uma perplexidade impotente. Vemo-nos levados para uma guerra que
quase ninguém deseja, e essa guerra seria, sabemos disso, uma catástrofe para a
maior parte da humanidade. Mas iguais a um coelho que a cobra fascina, fitamos
o perigo sem saber como afastá-lo. Contamos entre nós histórias horríveis de
bombas atômicas e de bombas a hidrogênio, de cidades aniquiladas, de hordas
russas, de ferocidades e de penúria no mundo inteiro. Essa perspectiva deveria
nos fazer tremer de horror, a razão diz isso; mas há algo outro em nós que
parece sentir prazer nisso.” (RUSSELL apud FINGERMANN, 2005). Disse Russell
sobre a guerra.
O
horror está diante de nossos olhos, o horror de um regime ditatorial está
atravessando a soleira da porta. Fingermann pergunta: “Poderia então o humano comprazer-se
no horror? Mas como seria possível sofrer assim do pior e no entanto gozar com
isso?”. Desde hoje de manhã estou chocada com a possibilidade da repetição. O
que essa massa acéfala pede é puramente gozar do horror. Vamos estudar
história? Por favor, não vamos esquecer o passado. Termino esse texto-desabafo
com uma frase de Elisabeth Roudinesco: “Vivemos numa estranha sociedade ao
mesmo tempo perversa e depressiva; uma sociedade doente de suas liberdades mas
sem desejo de liberdade; uma sociedade doente de tratamento mas sempre em busca
de uma impossível cura” (2009).
Se
o governo está muito ruim, vamos brigar, vamos acompanhar as ações políticas,
mas não vamos entregar nossa liberdade de voto assim de mão beijada para esses
que passaram de ano na matéria de história na base da cola.
CHIAVENATO, J.J. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994.
CHIAVENATO, J.J. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994.
FINGERMANN, D. & DIAS, M.M. Por causa do Pior. São Paulo: Iluminuras, 2005.
ROUDINESCO, E. Em defesa da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
ROUDINESCO, E. Em defesa da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
Isloany Machado, 02 de novembro de 2014.
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