E eis que de repente a inspiração se
esvai. Bato a cabeça na parede tentando parir alguma ideia, mas nada. Olho
todos os textos inéditos na prateleira, mas nenhum me agrada. E agora José? Só
consigo pensar nas ideias dos outros. Quando acabou minha inspiração? Será que
eu já disse tudo o que tinha pra dizer? Tento pensar quando foi que minha
inspiração fugiu de mim. E, inevitavelmente, lembro do momento em que comecei a
escrever. Não a escrever como aprendizado da infância, mas a escrita que me veio
em enxurradas desde que a água viva me queimou. Foi quando meu primo decidiu
partir para a terra do nunca mais.
Naquele
instante eu saí da caverna e o mundo estava lá. As palavras me carregaram no
colo, me levaram a passeios de ver um mundo que não existia sob meus olhos,
mesmo quando existia. É estranho porque eu já via gente, eu já ouvia gente, mas
ao sentir uma dor pungente, as palavras me atravessaram as carnes. As palavras
que vinham das pessoas que eu via, que eu ouvia, que estavam no mesmo ônibus
que eu. Quando pensei nas pessoas do ônibus, lembrei que parte da inspiração
morreu quando comecei a dirigir. É um ato muito solitário. Ainda mais pra mim,
que não consigo pensar enquanto dirijo. Chega a doer a cabeça.
Antes
disso, eu via mais gente, com cabeças, corpos, cheiros, mal-cheiros, palavras,
palavras, palavras, xingões, empurrões, apertos, suor. Dores. Não só as dores
físicas depois de um dia cheio de trabalho, mas as dores nos olhos, as dores
que as injustiças trazem sem que as pessoas saibam onde é que dói. Mas dói lá
no fundo, porque as coisas são assim mesmo, e mais tarde tem novela. Às vezes
sacava um olhar de boi no pasto, que mira o nada além do verde horizontal. E eu
sentia uma dor de boi confinado. Porque sabia que logo ali o mundo acabava. Mas
as palavras me atravessavam de um jeito como nunca antes, mesmo que eu tenha andado de ônibus a minha vida toda. As palavras me alcançavam porque eu não
tinha tanta pressa.
No
trânsito também há xingões, apertos, mas há buzinas e olhares enraivecidos. Há
pressa, sempre. Não há tempo de olhar para os olhos dos outros e imaginar como
é aquela vida. Não há tempo pra pensar. Agora eu só vejo cabeça, corpo e rodas.
Cabeça, corpo e rodas; cabeça corpo e rodas. Às vezes fico tentando olhar
através dos vidros escurecidos, encontrar o que há além, mas tomo logo uma
buzinada porque o sinal já abriu e o tempo acabou. Não raro, eu morro, ou
melhor, o carro. Mais buzinada.
Quando andava de
ônibus, eu descia depois do ponto final e gostava dos minutos que ficava parada
esperando até que o motorista retomasse a viagem e eu pudesse então descer.
Como ficava sozinha, aproveitava pra recostar a cabeça no banco e olhar pro céu
através da janela. Um dia parei os olhos nos restos mortais de uma pipa que
estava grudada na rede elétrica. Só estavam ali o esqueleto e a rabiola.
Prestei atenção nos detalhes da rabiola. Os fiapos voavam, voavam, sem sair do
lugar. Coloquei os óculos para ler o que estava escrito em alguns dos fiapos.
“PERNAMBUCANAS”.
Achei engraçado como as
crianças são capazes de subverter a função das coisas. Uma sacolinha plástica,
feita pra empacotar e pra encher de lixo depois, passaria a eternidade voando
alto, mesmo que sem sair do lugar. Fiquei feliz pela sacolinha, porque seria
eterna, mas fiquei triste também quando pensei que ela ficaria eternamente
gritando “PERNAMBUCANAS”. Há coisas que não se pode mudar e mesmo que ela voe
alto, não se pode mudar seu dito. Quando senti que minha inspiração estava indo
embora, pensei que eu era como a sacolinha que não tinha mais o que dizer além
de tudo o que já tinha dito.
Um dia, quando eu
esperava o semáforo ficar verde, sem poder encontrar os olhos das pessoas,
senti um certo conformismo com a vida séria de gente grande, que acorda cedo,
que vai trabalhar, que não brinca em serviço, que não sente, que não sofre, que
não pensa, que não pode olhar pra sacolinha voando no céu. E, com os olhos
grudados no vermelho, vi surgir um passarinho que pousou em cima do semáforo.
Faltavam poucos minutos para abrir, mas foi tempo suficiente para que nossos
olhos se encontrassem numa alegria e dor de pássaro. E quando eu já havia me
conformado com a vida encasulada, sem inspiração, o passarinho me chamou e eu
fui. Acho que voltei a voar, sem sair do lugar. Não sem antes levar uma
buzinada.
Isloany Machado, 18 de julho de 2014.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirIsloany, tenho acompanhado seu blog a algum tempo, e tenho adorado a maneira como trata as questões do cotidiano, traz leveza e espontaneidade sem deixar de lado uma escuta atenta. Parabéns pelo "trabalho"!
ResponderExcluirTaissa, muito obrigada pelo carinho e por fazer questão de parar uns minutos pra me dizer que gosta desse meu trabalho meio avesso!
ExcluirAbraços!!
Ah! Texto delirante! Adoro sua simplicidade! Qualquer coisa podemos dar umas voltas de ônibus qualquer dia desses ;)
ResponderExcluirAline, minha companheira. de algumas viagens, até que não seria má ideia!!
ExcluirBeijo