Convocada
a dizer sobre o amor, travei. Sim, escrevo. Mas sobre o amor? Não! Entretanto,
não havia escapatória. Tinha que dizer, como psicanalista, do amor. Os dias
foram se arrastando e as palavras fugiam. E de lá do fundo do meu falasser brotavam chavões: “O amor é
fogo que arde sem se ver”. O que é o amor, o que é o amor? “É só o amor, é só o
amor”. Às voltas com a convocação, espremia, espremia, e nada.
Tenho
o costume de andar olhando para as coisas do chão. Até algum tempo atrás achava
um jeito feio de andar, mas depois de Manoel de Barros[i],
que dá tanto valor para as coisas desimportantes – coisas de formigas, de
pedras, de rãs – achei que não tinha problema esse meu olho torto. É no chão
que acho as coisas mais fundamentais. E eis que um dia, chutando pedrinhas no
centro de Campo Grande, encontrei um bilhetinho roto que dizia: “AMOR TRAGO
JÁ”. Passei reto. Fiquei com vergonha de apanhar do chão algo que estava tão
pisoteado. As palavras ficaram mordendo meu calcanhar, então na volta peguei,
com um meio sorriso pra disfarçar o constrangimento. Tentei não fazer de forma
furtiva para que as pessoas não pensassem que encontrara algo de valor. Era só
um papel muito roto e pisoteado. Corri para o consultório a fim de ler o que
dizia. Transcrevo:
“AMOR TRAGO JÁ
**ATENÇÃO** Não Sofra mais...Chega de sofrer
e venha ser feliz...Eu posso e trago o seu GRANDE AMOR de volta GAMADO,
AMARRADO E ACORRENTADO para sempre, em apenas 7 dias com garantia e rapidez,
não importa a distância que for, esteja ELE ou ELA aonde estiver. Tenha quem
você AMA aos seus pés para sempre. NÃO SOFRA MAIS! Há solução p/ todos os seus
problemas e outros mais. Faço e desfaço qualquer tipo de trabalho Espiritual!!
EU GARANTO O QUE EU FAÇO!!!
TRABALHOS RÁPIDOS E
GARANTIDOS
Sigilo Absoluto”
Reli
umas duas vezes e fiquei sem entender por que as pessoas haviam pisoteado
aquele papel, sem lhe dar importância. Fiquei comovida com aquelas palavras.
Talvez não com as palavras em si, pelo que dizem, mas porque o amor estava
misturado a todas as coisas desimportantes do chão. Quem teria deixado cair o
papel? Algum desacreditado do amor? Ou talvez alguém que nunca o tenha
conhecido. Reli o papel. Havia ali uma promessa de trazer o amor, o GRANDE AMOR
de volta. Mais que uma promessa, havia uma garantia. Me senti descrente, uma
mulher de pouca fé: Ora, o amor nada mais é do que amar ser amado, é demandar
amor.
Olhei
para o divã ao lado e fiquei lembrando dos ditos amorosos e desamorosos –
principalmente estes – que ouvira naquele mesmo dia, permeados pelo silêncio
das minhas intervenções. Não havia palavra que pudesse dar garantias de trazer
o amor no laço, AMARRADO, GAMADO, ACORRENTADO. Encafifada com a promessa do
bilhete, pensei: por que não? Por que o amor não se deixa amarrar, acorrentar,
para sempre? Depois de alguns minutos a sentir o gosto dessas duas palavras,
percebi que o amor não se pode acorrentar porque está como elo da corrente; não
se deixa amarrar, porque faz laço; não se permite enodar[ii],
porque o amor é o que faz nó.
Antes
de uma grande declaração de amor, há um nó na língua. Mas quando se perde um
amor, resta um nó na garganta. Às vezes este tipo de nó é tão apertado que a
vida se vai. Lenine[iii]
diz: “às vezes parece até que a gente deu um nó”, mas só parece, pois “hoje eu
quero sair só”, conta o restante da letra (1+1=1). O amor dá nó no ser: “levei
um nó”. Mas o nó que o amor dá não é cego, caso contrário o bilhete roto teria
que dizer: “Eu posso e trago o seu GRANDE AMOR de volta GAMADO, AMARRADO
E ACORRENTADO para sempre, pois trabalho com um nó cego”. Ora, os termos precisam
ser ditos claramente.
Acontece
que há outro nó. O nó borromeano, que Lacan utiliza em sua teoria para falar,
dentre outras coisas, de algo da ordem do impossível, de que não há completude.
Nenhum nó é cego, “desenodável”. Foi aí
que minha ficha caiu e pude entender minha descrença. Esse nó tem três elos
iguais em termos de consistência, pois desfeito um, qualquer um, o nó se
desfaz. Misturei Lacan com a cigana do bilhete, minha cabeça deu nó. Mas
entendi que o silêncio dos meus ditos diante do desamor que ouço todos os dias
na clínica, tem a ver com a face real desse nó, com o impossível da relação
sexual. Então, pelo lado avesso, pensei: se o amor é narcísico, pois não foge
das identificações e dos espelhamentos, é, portanto, imaginário. Mas se o amor
faz laço, enlaça o sujeito com seu desejo, é simbólico.
Neste
momento, deixei cair o bilhete e pensei: “Dona cigana, sua desatadora de nós,
não acorrente o amor, deixe-o livre para fazer nós”. Reli pela última vez o
bilhete e reformulei seu dito:
“AMOR TRAGO NÃO
**ATENÇÃO** Pode sofrer por amor...Continue a sofrer, pois
amar não é o mesmo que ser feliz...Eu não posso e não trago o seu GRANDE
AMOR de volta GAMADO, AMARRADO E ACORRENTADO para sempre, porque não se faz
nó cego no amor, porque não se pode acorrentar o amor, pois ele é a corrente.
No amor não há garantias, quanto menos em apenas 7 dias. Não importa a distância
que for, esteja ELE ou ELA aonde estiver, o ‘amor é bicho instruído’[iv].
Tenha quem você AMA aos seus pés para sempre, no espelho. SOFRA, porque ‘essa
ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã’. Não há resposta
pronta p/ nenhum de seus problemas e de ninguém mais.
EU NÃO GARANTO NADA!!!
TRABALHOS LONGOS E SEM
GARANTIAS
Sigilo Absoluto”
[i] Poeta regional e do mundo.
[ii]
Pesquisei a palavra “enodar” no google voice, em que você diz a palavra e ele
te dá o significado. Eu dizia: Enodar. E o google entendia: “anotar”, “e nos
dar”, “endnote dar”. O google não entende nada de amor, mas quando finalmente
digitei a palavra ele me deu o seguinte significado: “ligar com um nó: enodar
um ramo de flores”.
[iii]
Cantor e compositor brasileiro.
[iv]
Referência ao poema do escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade.
Isloany Machado, 28 de maio de 2014.
Sem sofrer nao se tem o amor
ResponderExcluir...quem nunca sofreu por amor e de amor! Como sempre vc escreve maravilhosamente so nao sei se a cigana vai gostar
Sem sofrer nao se tem o amor
ResponderExcluir...quem nunca sofreu por amor e de amor! Como sempre vc escreve maravilhosamente so nao sei se a cigana vai gostar
Quero só amar... já é o bastante.
ResponderExcluirAdorei Isloany, parabéns pelo nó das palavras do amor.
Quero só amar... já é o bastante.
ResponderExcluirAdorei Isloany, parabéns pelo nó das palavras do amor.
Você se superando sempre.
ResponderExcluirÓtimo texto.
Obrigada.
Valeu meninas!!!
ResponderExcluirSOFRA, porque ‘essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã’. ..Hoje mesmo estávamos conversando...amigas e psicanalistas..." Nâo consigo esquecê-lo", " Doi saber que nunca mais", " Ele é tudo com que sonhei"...então uma delas fez a seguinte colocação: Tudo que vc sonhou até aparecer o próximo...pois é : essa dor de amor as vezes não sara nunca...talvez sare amanhã. Quem sabe??? Adorei o texto.
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