Não
havia outra expressão que pudesse traduzir o que vivera naqueles três meses. Da
janela em que olhava a luz do Sol, o brilho a levava para um tempo passado em
que algo havia mudado o rumo de sua história. Ainda que sua memória falhasse às
vezes, lembrava que seus cabelos eram negros e longos, exatamente do jeito que
ele gostava. Aliás, fora exatamente o que lhe atraíra nela. Quanto a ela, ao
contrário de todas as outras moças, que se apaixonavam por alguma
característica física de seus homens, gostava mesmo era da letra dele. Talvez
porque na adolescência lera tantos romances alencarianos, que suspirava por um
homem que lhe escrevesse cartas perfumadas, com as letras desenhadas, quiçá
alguma palavra borrada por uma lágrima que tivesse escapado do peito oprimido.
Pela
janela, avistava longe um trabalhador rural e, imaginando o suor que fatalmente
molhava a roupa daquele homem sofrido, lembrou-se de como, naqueles encontros
longínquos, ambos os corpos ficavam inundados pelo suor, que já não sabiam mais
de quem era. Ele não era tão alto, nem tão forte, e seu olhar tinha uma dor de
bicho que pede salvação. Era dor, era ódio, era ressentimento. Uma certa
amargura de quem já esteve muito próximo da própria imundície. O que o fazia
forte, como fera depois de ser muito acuada. Ela olhava em seus olhos e não
conseguia saber até que profundidade podia pisar sem que fosse levada pela
correnteza e pelos redemoinhos do ser daquele homem de olhos cor de
jabotica...castanhos. Eram castanhos, mas enegrecidos como só pode ser o fundo
do mar, à noite.
Na
mesa de metal do seu quarto, agora olhava as rugas que chegavam ao redor da
boca, mansamente, como uma espécie de rio assoreado. Sentiu ali mesmo o calor fantasma
da dor e das delícias das pequenas mordidas que ele dava em seus lábios. E como
ela gostava da maneira como os olhos dele redesenhavam cada linha do seu corpo.
Aquele olhar lhe esculpia uma nova pele, mais doce, mais firme, quase perfeita.
E todo o universo parava quando aquelas mãos passeavam por todas as redondezas
de seu corpo. E o tempo parava. E o tempo se compadecia daqueles dois seres tão
pequenos diante da imensidão de seus desejos. E depois de tudo, ele lambia as
patas limpando a boca e coçando as orelhas, como um felino que se lava depois
de devorar toda a carne de sua presa, que já não existe mais senão através dele,
dilacerada.
À
noite, aquela letra invadia seus sonhos e não podia esperar para vê-lo mais uma
vez, ainda. E sempre e sempre e sempre. E o chão abraçava e acalmava seus
corpos. Estar com ele era perder os limites do próprio corpo, mas era saber
exatamente o que dizia a sua pele. Todos os dias desejava que o chão fosse o
contorno...além da pele. Eles já não sabiam mais para onde estavam indo, mas
pensar estava fora de cogitação. Em algum momento ele teria que ir embora. O
passado cobrava-lhe a dívida e era preciso voltar. Ele não tinha como fugir de
si, e mesmo que fugisse, carregaria o próprio cadáver no porta-malas. Escreveu
seu nome na carne quando ele foi embora, para não esquecer.
Tantos
anos depois e ela não podia se livrar daquelas lembranças. Começou a se lavar
todos os dias com tanta força, que a pele morena avermelhava-se, na tentativa
de tirar dali a lembrança do cheiro da pele dele, misturada com perfume. A boca
escancarava feridas intermitentemente, com saudade dos beijos. Havia algo que se
pregara em seus cabelos, talvez o toque de suas mãos quando ela deitava em seu
colo e pedia cafuné; talvez a lascívia com que lhe caíam nas costas sob os
olhares dele. Tosquiou-se. Queira se livrar daquele cheiro que não saía, mesmo
depois de se rolar na terra, de enfiar a cabeça na bacia cheia de água até
quase se afogar em suas próprias lágrimas.
Já
sem forças, percebeu que não podia se livrar das lembranças. Era tudo o que
tinha. Não havia sequer uma fotografia. Rapidamente juntou do chão os pedaços
rasgados da memória e colocou num baú que estava sempre aberto. Não havia
dúvidas de que fora um bom encontro. Lembrar nem sempre é o mesmo que não
esquecer. Às vezes, lembrar é agarrar-se com todas as forças, com as unhas e os
dentes, aos muros escorregadios do amor. Ela sempre se agarrara às palavras,
mesmo que uma ou outra vez ele tivesse lhe dito o quanto gostaria de acreditar
nas suas belas conjecturas de que podemos nos construir nas palavras e de
alguma forma permanecer infinitamente dentro delas. Depois que ele se foi, ela
se perdeu infinitamente nas palavras. Construiu labirintos, ergueu muros que
jamais seria capaz de ultrapassar.
Da
janela onde olhava para o nada, pendiam seus braços nos vãos das grades que a
impediam de sair. E quando lhe davam os remédios diários, sempre olhava para a
parte de seu corpo em que o nome dele fora escrito, com faca, para saber que
ali estava o único laço que restara com ela mesma.
Isloany
Machado, 22 de março de 2014.
Gosto muito dos seus textos!Acompanho com carinho.Bj!
ResponderExcluirObrigada querida!
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