Este
texto foi escrito por mim e minha amiga Cristina Cuiabália no ano de 2002, aos 17 anos,
para um trabalho de literatura do terceiro ano do Ensino Médio sobre Cecília
Meireles, muito antes da minha escolha pela psicologia. A fala dela foi baseada em algumas poesias de Cecília e também em um
livro seu chamado “Olhinhos de Gato”. Quanto ao analista, Dr. Incapacitus Brasiliensis, uma homenagem
nossa a um analista que até certo ponto caminha bem com suas perguntas, mas
peca pelo excesso de narcisismo e pela falta de análise. Obviamente que nessa
época não sabíamos o que eram esses conceitos, mas parece que supúnhamos um
saber à literatura que suplanta o saber daqueles que se colocam no discurso do
mestre.
A
Análise
Analista: Dr.
Incapacitus Brasiliensis (A)
Paciente: Cecília
Meireles (C)
A: Então, em que eu
poderia te ajudar?
C: Não sei, o analista
aqui é você!
A: OK. Vamos tentar
novamente. O que te trouxe aqui? Qual o motivo de sua visita? Qual o seu
problema?
C: O meu problema é que
todas as máscaras do mundo se debruçam sobre o meu rosto e às vezes eu sinto falta
de ter a minha própria face.
A: Fale-me sobre sua
vida, sua família, pois preciso conhecê-la.
C: Três meses antes de
eu nascer meu pai já havia morrido, e antes de eu completar três anos foi a vez
de minha mãe. Minha avó teve a tarefa de me criar. Desde pequena, sempre gostei
de livros. Até mesmo antes de aprender a ler, pegava-os e ficava observando a
encadernação, as letras, a impressão, achava tudo lindo! Aí, quando entrei na
escola, não desgrudava deles nem um minuto.
A: Então a senhora
sempre gostou do mundo mágico da ficção?
C: Sim. Sempre tive meu
mundo particular. Quando cresci me tornei uma professora primária, como minha
mãe. Gosto de lidar com crianças porque são inocentes e, para elas, tudo é
novidade. Olham sempre como se fosse a primeira vez. Sabe descobrir maravilhas
em pequenos detalhes.
A: Pelo que pude
observar a senhora se identifica muito com elas, não é?
C: É sim. Eu ainda me considero uma criança.
Não consigo tolerar aqueles adultos estúpidos, que passam por coisas belas e as
acham insignificantes, não veem a riqueza delas. Olhe para o assoalho. Agora.
Veja aquela cadeia de montanhas, consegue ver a mamãe pato com os patinhos?
A: Não!
C: Parecem apenas
riscos, sem nenhuma significação. Mas pouco a pouco se observa que há
ondulações de águas, praias, montanhas, um estremecimento de pássaros,
florestas densas, que escurecem – logo, um súbito jorro de estrelas e de luas,
borboletas infinitas batendo suas asas. É o mundo num assoalho. E os grossos
pés pisam indiferentes sobre estas maravilhas! Tenho medo de me tornar apenas
uma pessoa indiferente. Como os outros que andam, falam, riem, choram, se
vestem, se penteiam, mas nunca se mostram inteiramente.
A: Sim, continue, por
favor. Me explique melhor.
C: As criaturas humanas
falam, falam, falam, mas não há coerência entre suas palavras e seus olhos.
Logo se vê que estão mentindo! (Pega o espelho) Eu não tinha este rosto de
hoje, assim magro, assim, triste...nem estes olhos tão vazios...
A: Posso lhe recomendar
um esteticista se preferir. A minha secretária também estava com a auto-estima
baixa e eu sugeri que fizesse uma recauchutagem. Sabe como é, uma puxadinha
aqui...
C: Não! Você não
entende! Não estou falando de estética. É muito mais além. Falo de sonhos,
sensações, pensamentos...
A: É. Já era de se
esperar! Devem até pensar que a senhora é um tanto neurótica...
C: Neurótica?! Como tem
coragem? Sou apenas “uma mulher de fases”.
A: Então você se
considera uma mulher de fases?
C: É. Eu tenho fases
como a lua. Fases de descobrir o mundo, fases de me esconder nele. Em cada fase
uma face.
A: Como você lida com o
amor?
C: Não gosto de amar
com o amor dos homens. Aquele que dizem que é fogo que arde sem se ver, é
ferida que dói e não se sente, é um contentamento descontente. Acho que
deveríamos amar sem sentir, amar sem querer, amar sem amor, amar por amar sem
esperar nada em troca. Até mesmo sem perceber. O verdadeiro amor está muito
ligado à nossa vivência. Não há o que explicar.
A: E sobre a morte?
C: Eu convivo com ela
desde pequena, todos os meus familiares morreram, fiquei só com a minha avó. E
acho que a morte ensina a gente.
A: Então você não tem
medo dela?
C: Não. Algumas pessoas
têm medo de se acabar e não veem que se acabam todos os dias na tristeza, na
dúvida, no desejo. Mas também se renovam todos os dias na tristeza, na dúvida e
no desejo. As pessoas só se tornam eternas quando perdem o medo de morrer.
A: Suponho que você
acredite na existência de um deus?
C: Minha avó sempre
dizia que não adianta nada as pessoas rezarem tanto, construírem tantos altares
e igrejas, se não tiverem deus no coração. Eu acredito que deus está dentro de
nós e cabe a cada indivíduo a escolha do caminho a ser seguido.
A: Você tem muitos
planos e objetivos?
C: “O terreno do amanhã
é incerto demais para os planos e o futuro tem o costume de cair em meio ao
vão”. Shakespeare, conhece?
A: É, devo ter lido
alguma coisa...
C: Eu procuro viver
cada dia como se fosse o último. Para que se desesperar com o que pode vir a
acontecer, se de repente tudo poderá mudar? Um gato!
A: Muito obrigado! As
pessoas falam mesmo que eu sou um doutor muito bonito, atraente, inteligente,
maravilhoso, fenomenal, fabuloso, incrível...
C: Você já parou pra
pensar no sentido da existência de um gato? Eles sobem muros, árvores, e o sol
faz brilhar o seu pelo de cetim. Hesitam se devem ou não matar uma borboleta
que passa. Dormem tranquilos e sonham com o tempo em que eram tigres. Dias
depois aparecem rodeados de moscas e formigas. Seu pelo já não brilha mais. E
tudo porque um menino acertou-lhe uma pedra. Tem a cabeça amassada, e um olho
pra fora. Não é efêmero? Ei, o que você tanto escreve?
A: É o seu diagnóstico.
Você mesma o escreveu, leia. Confie em mim...
C:
1. Eu canto
porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.
2. Irmão das
coisas fugidias
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
No vento.
3. Se desmorono
ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
Ou passo.
4. Sei que
canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
Cuiabá, em algum dia de março de 2002.
Bom, acho que meus comentários são suspeitos de mais pra valer aqui...mas queria deixar uma declaração...vi vocês (Isloany e Cristina) passearem nos corredores da escola, vi cochicharem uma com a outra inúmeras vezes, vi lágrimas e sorrisos, nascerem em conversas confidenciais,... e com a minha matemática, não enxergava o que significava tudo isso, mas o que eu via, era toda essa poesia em vocês, a beleza que cada uma carregou e carrega. Linda Geração de 84, que me ensinou e ainda ensina muito...Beijos...;)
ResponderExcluirAi amigo, que lindo!!!! Claro que seu "depoimento" vale e muito! Como tenho saudade daquele tempo...veja que toda a minha vida profissional foi influenciada por isso, por essa grande amizade, pela poesia que fazíamos juntos, todos nós. Beijo pra vc e pra Cris.
ResponderExcluirAmo seus textos,acompanho tudo com muito carinho.Continue,aqui no Crato,interior do Ceará você arrumou uma fã ardorosa!Bj!
ResponderExcluirÔ Silmara, obrigada pelo carinho! Abraço pra terra cearense!!!
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