Tenho comigo uma fotografia de
família que foi tirada em uma das fronteiras entre o Brasil e o Paraguai. São quatro
pessoas na foto: a mãe, a mana, eu e o pai. Mana é o apelido carinhoso que meus
pais me ensinaram para chamar a irmã mais velha. É assim que todos os meus
primos chamam seus irmãos mais velhos, só o primogênito. Costume de gente do
sul. Os “manos” da minha família podem ser contados nos dedos: Ellen (a minha
mana), a Jane (a mana do Alex e do Ariel), o Jeferson (mano do Jean e da
Jesielen), o Cleber (mano do Heder, da Anabela e da Maria Angélica), a Andréia
(mana do André e do Alisson) e a Sandra (mana do Adiel, que não está mais entre
nós). Ser mano (a) é ter um algo a mais. É ter o poder de mandar nos outros,
reles mortais, súditos dos manos. Havia então o clã dos manos e manas, cujas
brincadeiras excluíam os demais, que tinham idade menor. Eu, particularmente,
me ocupava em destruir as brincadeiras dos manos, já que não podia participar. Mas
estou dando toda essa volta para dizer que se tratava de uma nomeação e que
aquilo significava muito para nós. Tanto que passarei isso adiante. Como eu
disse antes, é um costume de gente do sul. E o que eu tenho a ver com a gente
do sul? Me explico.
Comecei o texto falando de fronteiras.
Minha família era do sul, mas desobedeceu o costume de viver no sul e mudou-se
para o Mato Grosso. Lá estava eu na barriga da minha mãe, a caminho do norte,
em busca de uma vida melhor. Década de 1980. A primeira terra que meus pés
conheceram foi a terra mato-grossense. Mas à terra natal não se abandona
completamente, e minha família carregava na sola os costumes do sul: o chimarrão
todos os dias às 5h30 da manhã (mesmo que a nova morada fosse quente como o
inferno), ouvir rádio AM enquanto toma o café, acordar cedo para trabalhar
(costume de que sempre viveu na zona rural), dentre outras coisas. Não era
permitido, nem mesmo às crianças, ficar na cama depois das 7h. Até hoje meu corpo
dói se durmo um pouquinho além do horário.
Em 1986 veio a mudança para
Cuiabá (capital do Estado). E aí outra configuração cultural nos invadiu. Deixamos
pra trás os outros familiares e entramos em contato com pessoas completamente
diferentes, que não gostavam de chimarrão por viver desde sempre em uma cidade
muito quente. Pessoas que comiam peixe com maxixe. Mas hein? O que é maxixe
mesmo? Comiam arroz com pequi. Marizabél. Mas nós éramos estrangeiros. Enquanto
o sotaque dos cuiabanos era arrastado, o de meus pais era rápido, de muito “leitE
quentE dói o dentE da gentE”. Quanto a mim, nem um sotaque nem outro. Amava aquela
terra quente em que fui criada e onde vivi até os 17 anos.
2002 – mudança, agora sozinha,
para Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. Sim, do SUL. Para quem não sabe,
o Estado de Mato Grosso foi dividido em 1977. Há, desde então, uma fronteira
entre mato-grossenses e sul-mato-grossenses, até uma certa hostilidade às vezes,
cujo motivo eu nunca entendi. Há uma linha simbólica que separa norte e sul,
mas a história, até a divisão, foi a mesma: a Rusga, a guerra contra o
Paraguai, o coronelismo, os meios de comunicação, a população indígena, enfim. Os
nomes das ruas são os mesmos, já que nossos “heróis” são os mesmos: Fernando
Corrêa da Costa, Afonso Pena, Antônio Maria Coelho, Marechal Rondon. Eu
sinceramente me senti em casa aqui, a não ser pelo sotaque, que era bem
diferente do cuiabano. E foi aqui que conheci a sopa paraguaia (no pensionato
Casa do Estudante), a chipa, o tereré (que ainda não prendi a gostar), a
empanada, nham nham. Aqui faz frio. Aqui tem a segunda maior colônia japonesa
do Brasil. Aqui eu aprendi a comer sushi e sashimi. Vez ou outra converso com
algum coreano que diz “polta” ao invés de porta. Aprendi a comer yakissoba e
sobá.
Desse modo, sempre fui de casa,
mas ao mesmo tempo, estrangeira. Por isso fiquei pensando nas fronteiras. Na primeira
vez que fui ao Paraguai, fiquei procurando a linha que nos separaria de seu
povo: não passa de um símbolo. É só dar um passo. Melhor assim do que uma
muralha. E aí o tema das fronteiras invadiu meus pensamentos. Pensei nos amores
vividos ao atravessar uma linha. Pensei no encontro das línguas, literal e
metaforicamente. Lembrei de Romeu e Julieta que eram proibidos um ao outro por
uma fronteira entre famílias. Há amores separados pelo tempo, outros que são separados
pelo sim ou pelo não. Alguns amores são separados por apenas um passo. Um passo
em falso. Mas este mesmo passo pode ter sido o que fez o encontro. Pensei que a
linha de fronteira é como a linha que divide dois corpos que se confundem e se
misturam. Cada lado existe independentemente, mas há muitos elementos que
ultrapassam as fronteiras, como nas trocas amorosas, cujo limite é a pele.
Venho de uma família andante,
cujo costume é o de ignorar as fronteiras. Muitas coisas ficaram pra trás,
muitas coisas eu ainda estranho. Carrego na sola dos sapatos muita terra
acumulada. Não sei pra onde irá a próxima geração, mas ainda que sem raízes, é
aqui que eu quero ficar.
Isloany Machado, 04 de março de 2014.
Estive aqui e gostei. Sem dúvida, só volto onde gosto.Aqui voltarei. Abraços.
ResponderExcluirEu já virei fã, parabéns Isloany.
ResponderExcluirObrigada Adhemir e Leandro!!
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