Meu
pequeno,
Tenho
visto sempre suas fotos enviadas por sua mãe. Como você está lindo, cada dia
mais. Claro que eu sou suspeita pra falar qualquer coisa, porque eu acho você
muito parecido com as pessoas da sua família materna, comigo inclusive. Quando
você crescer um pouco mais vai entender a relação de amor e ódio que temos com
sermos ou não parecidos com a família. Sabe por quê? No fim das contas, a gente
sempre carrega mais do que gostaria de semelhanças com nossos familiares. E
veja bem, isso vai muito além da aparência física. Mas se você estiver
lembrado, eu já te falei um pouco sobre a família.
Eu
tive que sentar novamente aqui para escrever sobre a loucura. De novo, tia? É o
que você pode estar me perguntando. Mas sabe, esse é um tema que me amedronta
tanto, que supus que poderia falar dele em uma carta e só. Na verdade eu queria
falar disso assim, rápido, pra não ter que pensar muito. Mas sabe que isso me
perseguiu todos os dias depois que escrevi a penúltima carta pra você? Eu fujo,
mas a loucura me encontra sempre. Poucos dias depois que te escrevi, estava
andando numa livraria e bati o olho num livro que há tempos queria comprar. Mas
é daqueles que dá medo e eu não quis pedir pela internet, então pensei que se o
encontrasse por acaso em uma livraria, talvez pudesse comprá-lo. E não é que o
danado pulou na minha frente? E no meio de tantos outros, lá estava ele, como
uma ferida aberta, uma fratura exposta. Não pude resistir.
O
livro conta a história de um lugar que abrigava “loucos”, em uma cidade chamada
Barbacena, interior de Minas Gerais. Pode ser que um dia você conheça este
lugar, se for viajador como seus pais. Eu coloquei a palavra loucos entre aspas
porque muitas pessoas que eram mandadas para lá não eram doentes mentais.
Muitos eram sujeitos desprezados pela sociedade. Então, como eu te disse, não
pude deixar de comprar esse livro, porque ele conta uma história triste e nos
faz lembrar do que somos capazes de fazer com aqueles que nos incomodam. Sim,
querido, nós. Parece estranho dizer assim né? Mas não, não é. Nós, enquanto
categoria de humanos, fizemos e ainda fazemos isso. Não quero entrar em
detalhes agora, mas é o que sempre te falo sobre as diferenças e nossas
dificuldades de lidar com elas. O que eu posso te dizer é que li esse livro aos
prantos, e sempre com um nó na garganta. Ele traz imagens e histórias de
algumas das pessoas que estiveram lá. Muitas morreram por falta de cuidados,
higiene, alimento e muitas outras coisas. É realmente chocante.
E
eu imagino que você deva estar se perguntando por que eu voltei nesse assunto,
por que isso mexe tanto comigo a ponto de eu chorar ao ler um livro de cabo a
rabo. As palavras me fogem, mas eu vou tentar traduzir pra você. No início da
carta, quando te falei das questões familiares, eu mencionei que às vezes a
gente leva mais da família conosco do que realmente gostaríamos. Agora eu
preciso ser franca com você e parar de usar meias palavras, por mais que isso
seja um nó dentro de mim, ainda.
Sabe
querido, nós temos algumas pessoas em nossa família que foram chamados de
loucos pela medicina. E saiba que essa frase saiu como uma vespa furiosa da
minha boca. Isso me dói. Por que tia? Imagino que esteja perguntando isso, do
alto de seus 15 meses de vida. Meu amor, falar da dor do outro é fácil, falar
da morte também o é, relativamente, afinal, todos já perderam alguém. Falar da
loucura teoricamente é fácil. Explicar os mecanismos da psicose, tira-se de
letra. Mas há uma “dor de concha extraviada”, como disse o senhor Manoel de
Barros, quando o louco é da nossa família. Precisa de uns minutos para
respirar? Sim, porque eu preciso.
A minha garganta ainda sufoca quando eu me
lembro das cenas. Acredite se quiser, não é só uma pessoa que foi nomeada louca,
são várias. Mas de perto eu só vi uma. Você não sabe o quanto me custa escrever
sobre isso pra você, mas não posso deixar de dizê-lo, não mais. É uma mulher,
minha tia, sua tia-avó. Dizem que ela ficou louca depois que teve o segundo
filho. Não me pergunte nada, não me peça pra te explicar como isso acontece,
por favor. É da minha tia que estamos falando e não de um paciente que eu
poderia olhar de fora e mais de perto. Eu me lembro vagamente de quando ela ia
ficar na nossa casa, depois das internações. Eu era criança, mas me lembro. É
difícil dizer, mas lembro do medo que sentia dela e daqueles olhos esbugalhados
de quem tudo vê. Claro que são lembranças vagas, mas tenho uma mais nítida.
Quando
eu tinha uns 13 anos, fui com minha mãe visitá-la no hospital. Lembro até hoje
do cheiro meio azedo que me invadiu. Era o cheiro do lugar. Cheiro de saliva
misturada com leite e fermento de pão. Fora isso, lembro das pessoas usando uma
roupa muito muito rota. Algumas sem dentes. Minha tia era uma delas. A
dentadura fora-lhe tirada pela equipe do hospital, porque brigas poderiam
acontecer e danificar seus objetos pessoais, pelo menos era a explicação que
nos davam. Era assustador. Era e não era a minha tia. Era um trapo humano, com
uma roupa muito muito rota e sem dentes. Lembro que ela não dizia coisa com
coisa. Diziam que ela era esquizofrênica. E como é difícil dizer isso, mas eu
acho que davam choque nela. Preciso respirar de novo.
Até pouco tempo atrás, eu tinha medo de
enlouquecer, de perder os dentes (ainda sonho que meus dentes estão caindo ou
esfarelando), de cheirar azedo, de levar choque, de vir a ser um trapo humano.
Um dia fui fazer uma cirurgia e me deram uma roupa de hospital pra vestir. Não
consegui me olhar no espelho. Estava rota. É impressionante como os momentos em
que nos deparamos com a fragilidade do nosso corpo são angustiantes. Mas não
são pouco, são muito angustiantes. Nós adoramos afirmar nossa sanidade e, às
vezes, nosso único parâmetro é a insanidade do outro. O outro é louco e eu não.
Ufa, ainda bem. Não se assuste, meu querido. Aqui está a sua tia, de peito
aberto, falando de seu maior medo e de sua pior lembrança.
Sabe,
eu poderia ter fugido disso, dessas lembranças, dessa dor que sinto ao falar
desses medos, mas não. Aos 17 decidi fazer psicologia porque ouvi falar de
psicanálise e de um certo descontrole que temos de nós mesmos. Eu queria
entender, ainda que naquela época eu não fizesse a menor ideia de onde meus pés
me levariam. Sabe aonde eu fui parar no meu primeiro estágio extra da
faculdade? Num hospital psiquiátrico. Acredite se quiser. Até hoje eu não
acredito. Quando entrei, aquele mesmo cheiro me levou de volta aos 13 anos e à
cena da minha tia. Cheiro de leite e saliva, de pão com manteiga, tudo
fermentado na boca. Sabe aquele cheiro que a gente exala pela boca quando toma
café e não escova os dentes? As roupas eram menos rotas do que na minha
lembrança. Os discursos eram desconexos, sem nexo, de sexo. Eu tinha que buscar
um sentido ali. Levei uma cuspida, mas agora eu estava de jaleco branco. E,
politicamente incorreta, a frase que não saía da minha cabeça era: ainda bem
que não sou eu. Mas sabe, nessas horas, tudo o que você quer é chegar em casa,
colocar pra lavar o seu jaleco cuspido, saber quem você é, e dormir em paz. Mas
meu sono sempre me levava para uma certa boca aberta e sem dentes. Muitas vezes
a minha. Quando você é o do jaleco branco, talvez consiga dormir em paz, mas eu
era a sobrinha e meus fantasmas puxavam os pés.
Um
dia eu fui convidada para assistir a uma sessão de “Eletroconvulsoterapia”. Um
nome chic pra choque elétrico mesmo. Não nos enganemos. Foi a coisa mais triste
que eu já vi na vida. E eu só me perguntava: o que eu estou fazendo aqui?
Enquanto aquela pessoa sem nome convulsionava e babava na minha frente. Podia
ser a minha tia. E será que não era? Será que não era eu? Saí da sala com o
choro preso na garganta. O jaleco branco me impunha certa postura neutra. Quase
enlouqueci.
Ao
ler o livro de que te falei, percebi que eu fazia parte de uma massa de pessoas
que, direta ou indiretamente, foram torturadores. Roubar a identidade de alguém
é o pior crime que se pode cometer. Para me eximir, fui estudar outras formas
de ver o louco, de entender seu discurso, enfim. Como estudiosa, consigo
entender os mecanismos da loucura, sua posição de objeto na sociedade. Mas como
sobrinha da louca, só consigo sangrar.
Me
desculpe por falar sobre isso, sei que é pesado pra você, que ainda é um bebê,
mas eu estava sufocando.
Isloany
Machado, 10 de Março de 2014.
P.S.:
A titia te ama.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEmocionante!Fiquei muito comovida,excelente texto!
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