Meu querido, feliz ano novo!
Da
última vez que nos vimos, você completava um ano de vida. Como estão as coisas?
As pernas já estão mais fortes? Já consegue andar sem que tremam tanto? Vou te
dizer uma coisa: aproveite a sensação das pernas tremendo, são poucas coisas na
vida que fazem a gente sentir isso de novo. Sabe meu bem, cada vez menos as
pessoas aguentam sentir. Sentir o que, tia? É o que você deve estar me
perguntando. Sentir tudo. A nossa vida tem se tornado cada vez mais um
turbilhão de coisas a serem feitas, e o tempo é curto. Não dá tempo de parar
pra sentir. Sabia que agora, se uma pessoa que você ama morre e depois de
quinze dias você ainda estiver triste, seu luto é patológico?
Ai
tia, que diabo é isso de patológico? Como vou te explicar isso? Patológico é
aquilo que não é normal. E eu agora pergunto: O que é normal? Sabe querido,
desde que comecei a estudar psicologia, nunca mais pude usar a palavra “normal”
de forma normal. É uma palavra que causa mal-estar nos psicólogos, pelo menos
naqueles que não engolem qualquer verdade. Chega a ser engraçado, sempre há um
“entre aspas”. O normal é aquilo que algumas pessoas se juntaram para
estabelecer que é o que todas as outras devem fazer. Geralmente é baseado
naquilo que determinado grupo acredita como sendo certo. Vou tentar dar
exemplo.
Você
mama na sua mãe, certo? Hoje em dia, mulheres amamentarem é considerado o
correto, o melhor para a saúde dos seus filhos. É o normal, vamos dizer assim.
Tempos atrás o normal era que as crianças fossem amamentadas por outras
mulheres, que não suas mães. Eram amas de leite. Uma mãe que quisesse amamentar
era “anormal”. Nos mesmos tempos atrás, uma mulher que abandonasse o filho era
normal. Hoje, são monstras. E até as mulheres que dão seu sangue e trabalham
muito se sentem culpadas pelo tempo que ficam longe dos filhos. O normal é
sentir culpa, se não sente, não é boa mãe. O problema é que as pessoas esquecem
que isso muda com o tempo e fazem com que se torne “natural”. Aí é que está o
problema. Lembra daquele grupo que dita as ordens do qual falei anteriormente?
Pois é, eles fazem de tudo para apagar a história. Apagando a história, só
podemos pensar que foi assim sempre e assim sempre será. Está confuso?
Mas eu falei de tudo isso pra tocar num
assunto que é difícil de dizer. Mais do que a morte tia? É o que você pode me
perguntar. Mais, meu querido. Pra mim isso é mais difícil. Sabe por quê? Porque
é como estar morto, mesmo que vivo. Chega de mistério. Eu queria falar com você
sobre a loucura. Tenho medo de não conseguir. Mas vamos lá. A loucura tem a ver
com modos de sentir, pensar e agir diferentes do que é considerado “normal”. Ou
seja, foge ao padrão daquilo que foi estabelecido como norma. Só que isso tem
muitas variações. Algumas pessoas sabem quais são as regras, sabem quem dá as
cartas, mas mesmo assim fazem coisas que os outros julgam serem loucas. Por
exemplo, se todo mundo acha bonito e normal andar pra frente, e você anda de
ré: só pode estar doido. Se todo mundo anda olhando por cima do próprio nariz e
você anda olhando pro chão: doido. Se todo mundo acha o máximo ter todo ano o
carro do ano e você prefere ter sempre o mesmo carro, ainda que possa trocar
todo ano: pirado da batatinha. Mas há várias formas de ser diferente da norma.
Você pode fazer poesia. Pode fazer música. Pode usar a blusa do avesso de vez
em quando. Pode pintar o cabelo de verde, rosa, roxo, azul, amarelo. Mas mesmo
assim você saberá que está fugindo das normas. Isso não deixa de ser um jeito
de agir, pensar e sentir, diferente das outras pessoas. Mas querido, isso ainda
não é a loucura.
Estou
fazendo voltas porque talvez não saiba como dizer. Na nossa família há algumas
pessoas loucas. Loucas de verdade. Que não sabem quem dita as regras, não sabem
que o que estão pensando, sentido e como estão agindo, foge completamente da
norma. O que não quer dizer que não sintam! Talvez essa seja a diferença:
algumas pessoas querem parecer loucas. Mas, como dizia o senhor Lacan, “não é
louco quem quer”. A loucura é um dos grandes dramas e mistérios dos seres
humanos. Algum fio que precisava ser cortado e não foi, mas ninguém sabe
porquê. Esse fio precisava ser cortado para que um emaranhado de outros fios
fosse formado. E esse emaranhado faria com que aquilo que é nu e cru, a verdade
sobre nós humanos, fosse escamoteada de alguma forma.
Imagine,
querido, uma cidade que esteja em ruínas. As construções foram destruídas, as
pessoas morreram, o caos instalou-se. Pouco tempo depois, a água veio e cobriu
esta cidade, ou o que restou dela. Muito tempo depois as pessoas podem passear
de barco por cima da cidade e jamais saberão que há ruínas ali. Mas imagine
agora que o louco é alguém que consegue olhar pra água e ver claramente o que
está submerso. Imagine que o louco sabe mais da verdade do que os outros que já
conseguiram esquecer a tragédia. Não sei se algum dia já te disse que nós
sofremos de memórias. Isso foi o senhor Freud que escreveu. Mas o louco não
sofre de memórias, porque ele, simplesmente, não esquece. Tudo o que está
vivendo agora nos seus primeiros anos será esquecido e se tornará ruína. Só
lembrará a partir do que os outros te contarem de como você era, de como queria
ardentemente estar com sua mãe, etc. Mas acredite, é melhor que seja assim. É
melhor que o fio seja rompido e que tudo não passe de ruínas submersas. Para
conviver com as ruínas é preciso fazer metáforas do impossível.
Beijos.
Isloany
Machado, 28 de Janeiro de 2014.
P.S.:
Não há mais nada que eu possa te dizer por agora.
Palavras de quem sabe o que fala.
ResponderExcluirÁpices: "não é louco quem quer" e "o louco não sofre de memória pois ele não esquece".
Já se tornou leitura obrigatória.
ResponderExcluirObrigada Túlio e Leandro, pelos comentários!!!
ResponderExcluirAbraço