Reiteradas vezes temos
ouvido falar da importância do diálogo entre a Psicanálise e a Literatura. Esta
relação para nós psicanalistas se tornou tão óbvia que esquecemos, por vezes,
de pensar em suas causas. Certa vez uma amiga de outra área me perguntou por
que havia tanta possibilidade de conexão entre as duas. Esta pergunta moveu do
lugar aquilo que parecia ocupar uma posição de obviedade, e me coloquei a
pensar nas relações. Desde Freud,
a teoria psicanalítica tem sido elaborada com a constante recorrência a textos
literários: Jensen (Gradiva); Sófocles (Édipo), que dá nome ao famoso complexo;
Dostoievski (Irmãos Karamazov); Hoffmann (O homem da areia); Goethe; Schiller;
Shakespeare; dentre outros. Em Lacan encontramos Marguerite Duras (O
arrebatamento de Lol V. Stein - ela escreve sobre o que ele ensina);
Shakespeare (Hamlet, O mercador de Veneza); Racine (A tragédia de Athalie);
Paul Claudel; André Gide; Allan Poe; Rimbaud; James Joyce.
Para
a psicanálise, a literatura foi e ainda tem sido material necessário para as
produções teóricas. Freud, como admirador da literatura, reconhecia na fala de
seus pacientes, os grandes dramas humanos contados por obras literárias. Sua
escrita teórica traz a marca desta relação com a literatura, pois aos 74 anos
recebeu o prêmio literário Goethe, da cidade de Frankfurt. Depois de pensar em
tudo isso, pude responder à questão da minha amiga “Por que há tantas conexões
entre psicanálise e literatura?”. Porque ambas têm o mesmo material de base
para suas criações: o humano com seus desejos, suas paixões, suas tragédias, os
dramas que se repetem, a loucura, a morte e o medo do depois da morte, etc, ou
seja, trata-se dos restos, daquilo que a razão não coloca no centro de seu
interesse. E não é isso o que ouvimos em nossas clínicas? Por isso no texto A questão de uma análise leiga (1926/2006), Freud propõe que a formação de um
psicanalista inclua “a história da civilização, a mitologia, a psicologia da
religião e a ciência da literatura” (p. 236). Deste modo, esta é uma das
possibilidades de diálogo entre a psicanálise e a literatura, um diálogo
necessário. Para Pollo (2013), “não é que a literatura ajude a psicanálise, é
que uma, como a outra, são feitas da mesma matéria prima, a que Freud deu o
nome de desejo inconsciente” (p. 4). E quais seriam as contribuições da psicanálise para a literatura?
Pensamos sempre no surrealismo como uma escola que foi grandemente influenciada
pela psicanálise, e temos também a escrita em “fluxo de pensamento”, que se
aproxima de uma livre associação de ideias. Este estilo pode ser encontrado nas
obras de Virginia Woolf, James Joyce, Clarice Lispector, dentre outros. Mas a
literatura já existia antes e não deixará de existir depois, quanto à
psicanálise, talvez não estejamos tão certos assim disso. Mas não podemos negar
que a psicanálise trouxe um novo paradigma, o descentramento da razão
cartesiana ao pensar numa razão inconsciente. Trata-se de uma contribuição para
a compreensão das mazelas humanas. O que não significa dizer que todos os
escritores se interessarão pela psicanálise.
Passamos
a outra questão levantada por Freud, trabalhada em seu texto Escritores Criativos e Devaneio (1908/2006),
sobre o processo de escrita criativa. O autor questiona sobre as raízes de uma
criação literária, curiosidade que, segundo ele, assola a todos com a pergunta
que não cala: De onde o autor tira inspiração para inventar histórias? Qual é o
material para as construções? “Como consegue impressionar-nos com o mesmo e
despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes?” (FREUD,
1908/2006, p. 135). Para responder à
primeira questão, ou seja, a partir de que material um autor cria, Freud nos
diz que é das fantasias infantis. Em geral os adultos se envergonham delas e as
escondem das outras pessoas, justamente por serem infantis e proibidas.
Entretanto, não basta narrar as fantasias, pois um simples relato não nos
causaria prazer, além de apresentar-se como algo causador de repulsa no outro.
É necessário algo mais na maneira de apresentar aquilo que julgamos ser seus
próprios devaneios, e é esse algo mais que nos causa prazer. Para Freud, o
segredo mais íntimo de um escritor é como ele consegue fazer isso. Seria algo
da ordem de um estilo, da estética.
A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso
sentimento de repulsa [...]. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios
egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer
puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas
fantasias. [...] a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária
procede de uma libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte
desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em
diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha.
(FREUD, 1908/2006, p. 142-3).
Mas
como falar cientificamente deste “segrego íntimo” do escritor? Seria isso a
sublimação? Transformar a fantasia fundamental em algo compartilhável, ou
melhor, socialmente aceitável? Será que um autor escreve sempre com a intenção
de que sua escrita seja aceita? Não nos esqueçamos de que nem tudo cai
imediatamente nas graças dos leitores. Um exemplo disso é o livro Madamme Bovary, de Gustave Flaubert, que
chegou a levá-lo aos tribunais por ofender a moral e a religião. Diante da
curiosidade da época em saber quem era “Ema Bovary”, Flaubert responde apenas:
“Madame Bovary sou eu”. E quem irá dizer que não era? Para Lacan (1959-60/1991),
o aspecto sublimatório da arte é que se constrói algo a partir do nada, reparem
bem que eu disse DO nada e não DE nada. O nada, ou seja, o vazio, é que se
configura como sendo a base da produção artística para Lacan. Então, o material da escrita
criativa são os conteúdos inconscientes. Cito Manoel de Barros:
“Sou
um sujeito cheio de recantos./Os desvãos me constam.” (BARROS, 2010b, p. 339).
“Os
delírios verbais me terapeutam.” (BARROS, 2010b, p. 339).
“Há
histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.” (BARROS,
2010b, p. 347).
Então,
temos na escrita conteúdos de fantasias infantis e proibidas, e há que se saber
fazer com isso para que seja lido com enlevo. Vejam outro exemplo:
Carrego
meus primórdios num andor./Minha voz tem um vício de fontes./Eu queria avançar
para o começo./Chegar ao criançamento das palavras./Lá onde elas ainda urinam
na perna./Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos./Quando a criança garatuja
o verbo para falar o que não tem./Pegar no estame do som./Ser a voz de um
lagarto escurecido./Abrir um descortínio para o arcano.
Ou
seja, a palavra tem que ir de volta às origens. Mas a poesia não é pra ser
explicada, é pra ser sentida. De acordo com Bento (2004), “à semelhança de um
espelho, a escrita permite ao homem pensar, mirar a sua fratura.” (p. 210). Mas
não basta mirar a fratura, os ditos traumas infantis, há que se saber o que
fazer com ela, ou ainda, a partir dela. Pensando no que disse Manoel de Barros,
se os delírios verbais terapeutam, de que forma terapeutam? Isso significa que
o prazer não é somente aquele sentido pelo leitor, mas também, e talvez
principalmente, de quem escreve. A escrita comporta uma repetição, que nunca é
do mesmo. A repetição é uma busca incessante por algo perdido, e a cada vez que
uma história escrita se repete, há uma perda de gozo (conceito lacaniano).
Seria isso o terapêutico? Mais uma vez recorro ao poeta para buscar a resposta: “Repetir
repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.” (BARROS, 2010a, p.
300).
Assim
como na escrita, em que há repetição, num processo de análise o analisante se
torna um escritor. Ou melhor, um reescritor. Vejam como é no processo literário
para Orham Pamuk:
O escritor é uma pessoa que passa
anos tentando descobrir com paciência um segundo ser dentro de si, e o mundo
que o faz ser quem é: quando falo de escrever, o que primeiro me ver à mente
não é um romance, um poema ou a tradição literária, mas uma pessoa que fecha a
porta, senta-se diante da mesa e, sozinha, volta-se para dentro; cercada pelas suas sombras, constrói um
mundo novo com as palavras. (2007, p. 12-3, grifo nosso).
Para
Manoel de Barros: “Pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir.”
(BARROS, 2010c, p. 374). Mas
por que um sujeito em análise se torna reescritor? Todos temos nossas
histórias, que se compõe daquilo que vivemos, do que ouvimos contar de antes e
depois que nascemos, ou seja, estamos inscritos e enredados em um romance
familiar, para usar o termo freudiano. Alguma história já está escrita por nós
na relação com os (O)utros, cuja base é nossa fantasia fundamental. Então, em
uma análise, o que se faz, além de outras coisas, é recontar essa história,
inúmeras vezes. Para Lacan, fazer análise é escrever sem caneta. Movemos de lá
pra cá e de cá pra lá os personagens, mudamos as frases, as vírgulas, tiramos
as aspas, repetimos, repetimos, até mudar o enredo da história. Trata-se de um
livro falado, que talvez não seja possível passar à tinta já que essa história
não se fecha nunca, tal como é apontado por Freud em Análise terminável e interminável (1937/2006).
Segundo
Beckel, “um sujeito em análise, ao contar e recontar a história de que é o
protagonista, passa a interpretar com um novo olhar o livro de sua própria
vida, dando-lhe outro sentido, ao tempo em que igualmente vai remodelando esse
personagem.” (2004, p. 2). Para Manoel de Barros, “a terapia literária consiste
em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”
(2010b, p. 347). Espere, mas não é isso que fazemos também em análise? Desarrumamos
a linguagem, tropeçamos nas palavras, em nossos lapsos, atos falhos, para que
possamos chegar um pouco mais perto de nossos desejos. Costuramos palavras, mudamos
a história e exigimos a originalidade da obra, não aceitamos mais co-autorias.
O
analista-leitor
Da
mesma forma que um analisante é o escritor-reescritor, um analista é sempre um
leitor. Segundo a experiência clínica, quando recebemos uma demanda, é demanda
de que sejamos leitores. De acordo com Bento, “no corpo físico e psíquico, o
sujeito seria um ser escrito. Como um suporte vivo, traria em si as marcas que
possibilitam a sua leitura.” (2004, p. 206). Um exemplo clínico:
Um
paciente apresentou um “medo irracional da gripe suína” e não via à sua volta
ninguém com um medo tão exagerado assim. Temia que a gripe suína fosse matá-lo
ou matar algum parente próximo. Em análise, ao falar que recentemente havia
sentido uma intensa dor nas costas ao entrar no avião, lembrou com temor, ter
percebido que no aeroporto havia muitas medidas de precaução e alerta contra a
gripe suína. Até que fez a associação de gripe suína – porco – lombo – dor
lombar, e lembrou uma cena de infância na fazenda em que os porcos eram
castrados com um torniquete com o qual os testículos eram arrancados, provocando
guinchos insuportáveis de se ouvir. Eram porcos escolhidos para a engorda e
posteriormente para o corte. Ao fazer esta associação, o medo da gripe suína se
atenuou e a dor lombar desapareceu. No entanto, vez por outra esse ponto de dor
retorna. [...] As dores lombares o acometem hoje em dia, principalmente nas
férias. Não é coincidência se era nas férias que ele ia para a fazenda e
assistia ao ritual da castração suína. Era lá também que comia lombo de porco,
ou seja, os leitões castrados e engordados. (QUINET, 2009, p. 74-5).
Deste
exemplo, mas de inúmeros outros da clínica, podemos dizer que o papel do
analista seja o de engajar o sujeito nesta escrita sem caneta, nessa costura de
palavras. Para Lacan (1972-73/1985), devemos engajar o sujeito a dizer
besteiras, associar livremente, não a dizer tudo, porque não se pode dizer
tudo. Dizer besteiras é tentar ficar longe das próprias censuras e julgamentos,
é o que deve ocorrer, já que é quando os ditos não são racionais que podemos
trabalhar em psicanálise, esta é a regra do jogo. Assim, o analista
assemelha-se a um leitor absorto em uma poesia, um romance, pois busca nas
entrelinhas das palavras faladas o que escapa ao que é dito em análise. Para
Beckel, “pinçando os significantes nas histórias de vida que lhe são contadas,
capta o que não está sendo enunciado.” (2004, p. 1). Seria o analista um
co-autor dessa nova história sendo reescrita? Pergunta Beckel. E eu me arrisco
a responder que, se Manoel de Barros inventou o abridor de amanhecer, nosso
instrumento como analistas é o descascador de palavras. Se o analisante faz a
arte de costurar palavras, nós analistas fazemos a arte de descascar palavras
para que o sujeito possa construir um novo desejo, que seja menos alienado ao
Outro e, portanto, mais autêntico.
Qual
seria então a diferença entre um processo de escrita e de análise? Ou seja, por
que não escrever e obter uma saída para nossos sintomas ao invés de passar anos
e anos num divã de analista? Ainda que a escrita seja uma produção artística
que se sustenta no fantasma, ou fantasia fundamental (IZCOVICH, 2013), em
análise ocorre um processo de travessia da fantasia, necessário para que caiam
as identificações, para que haja uma saída da alienação ao desejo do Outro,
implicando em uma mudança no posicionamento quanto ao sintoma. Assim, tem-se a possibilidade
de reinventar uma história. Se por um lado a escrita se sustenta no fantasma, ao
final de uma análise o estilo do analisante seria sem as marcas do fantasma.
Como
conclusão de tantos diálogos possíveis entre psicanálise e literatura, digo que
se trata de um amor eterno entre ambas, eterno enquanto durar, posto que o amor
é sempre chama. Se nada, inclusive a psicanálise, pode nos salvar do desamparo,
que a literatura nos permita devanear. Ainda que não possa salvar nossas vidas,
que ao menos nos salve da vida. Tanto na literatura como na psicanálise, sempre
é preciso haver um bom encontro de escritores e leitores. Digo ainda que no processo de análise, o que se faz é
pegar a palavra, descascar e ir tirando a polpa até chegar ao caroço. O
descascador de palavras é, portanto, nosso instrumento como analistas, pois
descascamos as palavras para que o paciente faça da polpa o que quiser, até que
se chegue ao caroço. Na escrita literária, pegamos a casca e a polpa da palavra
e fazemos doces, sucos, geleias, tortas, etc. E ainda pegamos o caroço da
palavra, já gasto do processo analítico, e plantamos para que dê mais
frutos.
Isloany Machado
Referências
BARROS,
Manoel de. O livro das ignorãças. In: Manoel de Barros – Poesia completa. São
Paulo: Leya, 2010a.
______.
Livro sobre nada. In: Manoel de Barros – Poesia completa. São Paulo: Leya,
2010b.
______.
Retrato do artista quando coisa. In: Manoel de Barros – Poesia completa. São
Paulo: Leya, 2010c.
BECKEL,
Gilcia Gil. Literatura e Psicanálise: qual a relação? Trabalho apresentado na
III Jornada de Psicanálise do Fórum Baiano de Psicanálise em 2004.
BENTO,
Conceição Aparecida. A escrita e o sujeito: uma leitura à luz de Lacan. Psicol.
USP, São Paulo, v. 15, n. 1-2, jun. 2004. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642004000100020&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em 03 ago.
2013.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642004000100020.
FREUD,
Sigmund. Escritores criativos e devaneio. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 09. Rio de Janeiro: Imago,
1908/2006.
______.
A questão da análise leiga. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 20. Rio de Janeiro: Imago,
1926/2006.
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Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 23. Rio de Janeiro: Imago,
1937/2006.
IZCOVICH,
Luis. Conferência proferida em Fortaleza – março de 2013.
LACAN,
Jacques. O Seminário livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
1959-60/1991.
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O Seminário livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1972-73/1985.
MACHADO,
Isloany. Costurando Palavras. 2ª Ed. Campo Grande: Life, 2013.
PAMUK,
Orhan. A maleta do meu pai. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
POLLO,
Vera. Psicanálise e Literatura. Conferência realizada na Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul em Campo Grande, dia 26 de julho de 2013.
QUINET,
Antonio. Com lalíngua no corpo. Stylus, Rio de Janeiro, vol. 19, p. 69-75,
2009.
Quanto sentido... Adorei passar por aqui!
ResponderExcluirMuito bom o texto! Parabéns!
ResponderExcluirAnônimo, seja bem-vindo! E Marcos, obrigada pelo comentário!
ResponderExcluirAbraços
Não preciso repetir que AMO os seus escritos, que por sinal são tão sempre tão BEM escritos.
ResponderExcluirUm forte abraço.
Obrigada querida!!!
ExcluirAbraços
Oi amei essa pág, perfeita, parabéns :D
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