Para a família Carneiro
Só
conheço, de perto, duas pessoas com mais de 90 anos. Uma delas é Manoel de
Barros, que conta com mais de 90. Sim, eu o conheci pessoalmente, estive com
ele por uns dez minutos e quase morri do coração. Eu precisava dizer a ele o
quanto eu gostava do seu trabalho. Disse. Chorei. Disse. Chorei. Ele riu. A
pele das mãos fininha, o cabelo branco, muito branco. E ria. A outra pessoa que
conheci, não menos importante, é Ávido Carneiro, avô de Andréia Carneiro, minha
amiga. Em agosto fez 90 anos e teve festa pra comemorar. Fui convidada. Ele
havia lido meu livro Costurando Palavras e disse que queria conhecer a autora.
Fomos
à festa, eu e meu marido. Na missa de agradecimento pela vida longa de Ávido, o
Padre falava da importância de uma vida pura, correta, nos caminhos santos,
enquanto eu me desconjurava pelo presente que havia comprado. Como sabia que
ele gostava de ler e já que completaria 90 anos, pensei: “É óbvio! Claro que
darei a ele Memória de minhas putas
tristes”. Um livro de Gabriel García Marquez que conta a história de um
homem que, ao completar 90 anos, decide que quer transar com uma adolescente virgem.
Pensei em fuçar os presentes e encontrar o meu, infame, em meio aos outros,
para escondê-lo. Levemente corroída pela vergonha diante das santas palavras do
Padre, já havia me conformado com meu destino de pecadora, blasfêmica.
Foi
quando de repente, talvez enjoado de tanto falar de Deus, o Padre decidiu falar
da importância da data que estava sendo comemorada e chegou perto de Ávido.
Passou-lhe a palavra. O que será que poderia dizer um senhor de 90 anos
recém-completados? Ele disse: “Eu nunca fiquei internado na vida! A primeira
vez foi dias atrás pra fazer cirurgia de catarata. Eu não estava mais
conseguindo ler. E olha que fui batizado em casa porque acharam que eu não ia
viver. Se estou vivo até hoje é por causa da literatura”. Rapidamente o Padre
tomou pra si a palavra e disse, meio desconsertado: “Pela graça de Deus, o
senhor está vivo! Pela leitura da bíblia!”. De longe ouvi Ávido dizer (sem o
microfone): “Graças à literatura!”. Todos disseram: “Graças a Deus!” e fomos
pra festa. Saí da igreja me sentindo aliviada e pensando que o presente não era
assim tão ruim.
Em
meio a tantos convidados, fiz questão de entregar pessoalmente o presente.
Quando chegamos perto dele, eu e minha amiga, ela disse: “Vô, essa aqui é minha
amiga...”. Antes que ela terminasse a frase ele disse: “É essa a escritora?”.
“É”, ela respondeu. “Minha filha, eu não me lembro mais o que você escreveu,
mas sei que quando li eu pensei que pela sua idade, você será uma grande
escritora”. Morri. Ouvir um elogio assim de alguém com 90 anos – meu leitor
mais velho – foi emocionante. Ainda mais sendo de alguém que chegou aos 90 por
causa da literatura. Eu olhava pra ele e via a pele das mãos fininha, o cabelo
branco, muito branco. Os olhinhos baços pela catarata. As bochechas murchas. Eu
via, na verdade, um garoto cujo grande prazer na vida era viajar nas fantasias
sobre as asas das palavras escritas. Suas viagens feitas de lá da casa do
sítio.
Então
pensei que eu quero ler até morrer. Eu quero morrer de ler. Eu quero ler pra
não morrer. Assim como Ávido, avidamente quero ler, e não morrer. Quero que a
literatura também salve a minha vida, estique, puxe, me leve pra voar até o
fim. E até depois do fim. Quero que a literatura nunca deixe minha alma
envelhecer. Pra que eu seja sempre criança quando escrever. Que eu não tenha
vergonha de voar sem tirar os pés do chão. E que mesmo quando eu estiver
velhinha, com a pele das mãos fininha, o cabelo branco, muito branco, que eu
ame a vida como uma menina.
O
aniversário era dele, mas o presente foi pra mim.
Isloany
Machado, 06 de setembro de 2013.
"Ávido", que nome lindo! Cheio de desejo, como seu texto. Parabéns mais uma vez.
ResponderExcluirObrigada querido!
ExcluirAbraços
Lindo! Amei. Chorei. :)
ResponderExcluirMaravilha Isloany, um texto belíssimo, como tudo que você escreve. Faz tempo que que não lhe visito. Mas, me sinto gratificada cada vez que o faço. Eu li "Memórias de minhas putas tristes" e gostei tanto, aliás como tudo que leio dele, que cheguei a utilizar essas experiência na minha monografia de Especialização, que trata da subjetividade da pessoa idosa no como se sente cuidado. Faço minhas as palavras do Ávido, como uma diferença, eu acredito que você já é uma grande escritora. O mundo é que precisa lhe conhecer. Beijos querida!!!
ResponderExcluirTherezinha, que carinho bom de receber. Obrigada pelo comentário!!
ExcluirGrande abraço.