Meu
pequeno,
Todas
as vezes que você vem me visitar e vai embora, fica um buraco tão grande! Li um
poeta que diz ser a saudade algo como a presença da ausência. Então pensei que
tem muita presença de sua ausência aqui no meu peito. O seu cheirinho ficou na
minha cama depois do último cochilo que você tirou aqui. Mas já deve estar
cansado de tanto eu dizer das saudades que sinto, não é?
Na
verdade estou às voltas faz muito tempo para falar de uma coisa indizível. E
mesmo agora estou pensando como te dizer algo que nem mesmo eu sei definir. Meu
querido, você ainda é muito jovenzinho. Vi que seus dentes estão começando a
nascer e você quer usá-los. É a vida que segue crescendo em você Henrique! A
vida, assim como o tempo, não para. E é sobre isso que eu queria falar com
você, mas como dizer?
Sabe
Henrique, a vida caminha dia-a-dia para seu próprio fim. Cada dia que passa,
cada explosão de vida que há em nós é, na verdade, um fenecer. Há um sonho que
me persegue há anos no qual sinto meus dentes se esvaírem de minha boca, ora
esfarelando, ora caindo inteiros, ou aos pedaços. É o sonho mais desesperador
que eu tenho. Demorei outros tantos anos para entender que é o meu medo do fim
se presentificando nas noites em que nego, narcisicamente, que meu tempo aqui é
limitado. Cada objeto que cai de nós é uma perda irreparável. Alguns poetas me
ajudam a lidar com esse triste real que não cessa de me deixar cara a cara com
o vazio. Manoel de Barros disse: “Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha
alegria ficou sem voz.” E foi exatamente assim, sem voz diante de uma ladeira
tão inclinada, que eu fiquei ao descobrir que a gente cessa. Me desculpe se eu
estiver sendo dura com você que é ainda tão pequeno, mas sei que em algum
momento isso vai te ajudar a saber o que fazer quando descobrir que um dia o
mundo abandona nosso olho. Isso também foi Manoel de Barros que disse.
“Quando o mundo abandonar o meu olho.
Quando o meu olho furado de belezas for
esquecido pelo mundo.
Que hei eu de fazer?
Quando o silêncio que grita de meu olho
não for mais escutado.
Que hei de fazer?”
Henrique,
essa é uma pergunta que somente cessa quando a gente cessa, mas ela não tem
resposta. Ninguém sabe como é acabar, por isso eu disse antes que é algo da
ordem do indizível. Aqui onde vivemos, o que se faz diante do fim, é chorar.
Lembra que eu disse que cada perda é irreparável? Pois é, a experiência da dor
da morte somente é vivenciada quando se trata da perda de alguém que amamos.
Você não imagina o quanto isso é difícil. Sabe o que me ajuda a lidar com isso?
A arte. Tia, o que é arte? É o que você deve estar me perguntando. Pode haver
várias definições do que é isso, mas vou te dizer o que significa pra mim. A
arte é o que me permite sonhar, é o que me faz acreditar que o mundo pode ser
melhor, sempre. A arte é a ferramenta que eu uso para lidar com o fenecimento
do meu corpo. É a caneta que escreve a saudade que sinto de você, fazendo com
que ela seja um pouco mais suportável. É a letra que me diz quem posso ser. A
arte é o que melhor eu tenho para remendar as fendas que o tempo foi fazendo na
minha alma. Eu lembro de uma cena que vi num filme e me marcou muito. Havia um
menino que perdera a mãe e não estava conseguindo lidar com isso. Então uma
pessoa muito especial disse a ele que a morte é como um véu, e esse véu se
escancara quando perdemos alguém que é muito importante para nós. Então ficamos
cara a cara com a nossa condição humana mais dura. Mas depois de um tempo ele
se fecha novamente e as coisas voltam ao normal, mesmo que cada perda seja
irreparável. Lá vou eu te dizer com as palavras de Manoel de Barros de novo: “Morrer
é uma coisa indestrutível”, é “uma solidão destampada”. E não é? Não há como
fugir, mas temos que viver tampando solidão. Eu me arriscaria a dizer que viver
é tampar solidão. Nós temos que viver como se nunca fôssemos morrer, é preciso
que seja assim. Mas sei lá, isso é ainda muito complexo pra mim. Desculpe os
devaneios, meu pequeno, dessa sua tia que vive a buscar o sentido da vida.
Nessas
minhas buscas Henrique, eu já descobri muitas coisas. Vou te contar um pouco.
Algumas pessoas não suportam o fato de que a vida caminha dia-a-dia para seu
próprio fim, e aceleram o processo. Elas cortam a estrada e, ao invés de andar
lentamente, saltam ansiosas. Você pode estar pensando que isso faz sentido, já
que morrer é indestrutível, é inevitável. Mas sabe, meu querido, eu aprendi com
o senhor Freud, já falei dele pra você, sobre a transitoriedade. Tudo o que é
vivo, é também transitório. Cada flor que nasce, com todo o esplendor da beleza
que possui, está fadado à decadência. Porém, Henrique, existem duas saídas: ou
passamos a vida a nos lamentar com a possibilidade sempre presente do fim e não
vivemos, ou nos rebelamos contra a transitoriedade e dizemos, como Freud: “Não!
É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas
sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada.” O valor
da beleza de uma flor não pode ser diminuído pelo fato de que, um dia,
fenecerá. Pelo contrário, ele só aumenta. A vida não pode ser menos importante
porque não é eterna. Esses dias eu e seu tio perdemos uma cachorrinha que muito
amamos e ficamos com medo de ter outra, com medo de perdê-la um dia também, mas
hoje chegou um bebê cachorro aqui e não pudemos resistir a essa vida que se
inicia. Existe muito amor para gastar nesse mundo. Escute o que o senhor Freud
disse: “Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno,
retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela
pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana
desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência,
porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite
nem por isso nos parece menos bela.”
Veja,
meu querido, não há motivos para pensar que não sejamos eternos, ainda que o
corpo não o seja. Nossa eternidade pode ser construída como fruto do tempo em
que vivemos. Inventamos nossa eternidade cada vez que nos levantamos de uma
queda e seguimos adiante. Inventamos nossa eternidade através da arte. Você e
os que vierem depois são também uma parte de nossa eternidade, carregam o
bastão da perenidade. As histórias que vivemos, ouvimos e contamos são nossa
eternidade inventada.
Você
entende isso Henrique? Não somos eternos, mas somos, ao mesmo tempo. E é isso o
que nos faz querer viver. Um dia você entenderá.
Eu
só quero que você viva, e lembre-se que cada segundo é pra sempre.
Milhões
de beijos, da titia que te ama.
Isloany
Machado, 04 de agosto de 2013.
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