Eu não tenho vergonha, nem medo de dizer que fui ladrão. E, antes que alguém me julgue e condene, vou contar minha história. Não pense que delinearei aqui uma triste história de um pobre coitado que teve de roubar para viver, ou para dar leite aos filhos. Nada disso. A verdade é que eu iniciei minha carreira roubando chocolates no supermercado, ainda criança. Com o tempo fui desenvolvendo técnicas e minha mão tornava-se cada dia mais leve. Tinha tantos chocolates, não é possível que sentiriam a falta de unzinho na barriguinha de um menininho.
Quando
já estava profissional decidi que roubaria bolsas, estava me graduando para um
dia fazer um grande roubo, como desses de filmes, em algum banco. Já havia
roubado três bolsas, mas não havia conseguido muita coisa de valor. Na primeira
delas havia uma quantidade de dinheiro razoável; na segunda, alguns pacotes de
chicletes; na terceira havia vários batons, que dei para minha mãe. Mesmo sendo
profissional, a atuação com o roubo de bolsas não foi tranquilo, dizem que
mesmo os grandes atores ou palestrantes famosos, sentem frio na barriga a cada
atuação. E eu não era diferente. Quando me arrisquei à quarta atuação com
bolsas foi que aconteceu a grande virada em minha história.
Eu
atuava de bicicleta, pois precisava ganhar distância muito rapidamente. Um dia,
no entardecer fiquei amoitado em uma rua com menos movimento. De repente surgiu
uma moça de uns 25 anos aproximadamente com uma bolsa enorme e brilhante.
Mascava chicletes e andava tranquilamente pela rua. Aproximei-me dela pelas
costas e, ao chegar perto puxei a bolsa sem pedir autorização. Tive que pensar
rápido, pois era bela e temi que, ao manter qualquer tipo de diálogo com ela,
desistisse da ação. Todo profissional tem lá suas técnicas de trabalho. Puxei a
bolsa sem nem olhar direito pra ela e voei rua afora. Já perto de casa e em
segurança abri a bolsa.
Na carteira havia uma mísera
moeda de cinco centavos. Seu documento de identidade confirmou o cálculo que
fiz da idade com uma pequena margem de erro: 27 anos. Uma cartela de
anticoncepcional pela metade; algumas balas sete belo; dois batons: rosa e
vermelho; uma escova de dentes; uma barrinha de chocolate; uma maçã, um sal de
frutas, um espelho e outras coisas que já não me lembro. Mas o que havia de
mais importante eu ainda não disse e fico emocionado só de lembrar. Dentro
daquela bolsa havia um livro.
Depois de vasculhar a bolsa e
recolher o que não me interessava dentro dela de novo, no dia seguinte procurei
um terreno baldio e joguei-a fora. A única coisa que esqueci de juntar foi o
livro, que ficou esquecido no canto do meu quarto por alguns dias. Ah, guardei
também a moeda de cinco centavos como minha moeda da sorte. Dias depois, como
eu começava a trabalhar somente ao cair do dia, não tinha nada que fazer e
lembrei-me do livro caído no canto. Peguei-o e li na capa: “Robinson Crusoé”.
Folheei e vi que não havia desenho algum, eram muitas letras, mas, com todo o
tempo livre, iniciei a leitura.
No tempo de dois dias li todo
aquele livro, não conseguia parar. Contava a história de um sujeito muito do
teimoso que, contra o conselho de seu pai, vai viajar pelo mar até que um dia o
navio em que estava bate contra um rochedo num dia de tempestade e somente ele
sobrevive, pois consegue chegar à terra firme. Eu sofria com ele todas as
atribulações de um homem que viveu, durante 28 anos, sozinho numa ilha.
Lembro-me que ele tinha uma porção de dinheiro em papel e um pouco em ouro, mas
aquilo era risível na situação que se encontrava. Até um pedaço de corda ou uma
faca lhe seriam mais úteis. Nunca pensei que pudesse viajar para tão longe sem
sequer sair do lugar. Fiquei deslumbrado.
No dia seguinte, em meu próximo
roubo, educadamente pedi à senhora que me desse apenas seu dinheiro, não
precisava de mais nada. Eu estava ansioso para ir a uma livraria que ficava no
centro da cidade, vendia livros usados. Pensei que poderia bem comprar livros
de segunda mão, porque ler não gasta o livro. Eu queria viajar de novo. Fugir
daquela minha vidinha medíocre e sem graça de ladrãozinho cuja maior aventura
era causada pelo medo de ser pego pela polícia. Achei uma promoção de vários
livros do detetive Sherlok Holmes. Li todos em menos de um mês. Fiquei perito
em descobrir pistas e sabia até quando algum passarinho afanava a comida de meu
cachorro. Roubava agora só o suficiente para comprar os livros da promoção do
sebo. Comecei até a ficar conhecido por lá.
A moça da livraria me vendeu uns
livros que ela achava muito românticos, disse que as professoras recomendavam
na escola. Mas desses eu não gostei não, as moças das histórias eram muito
brancas, pálidas e frescas. Desmaiavam à toa e jogavam seus lencinhos para os
homens pegarem. Eu preferia mesmo eram as histórias de Macunaíma, que viajava
pelo Brasil inteiro e eu ia junto com ele. Agora passava mais tempo lendo do
que roubando. Não havia mais emoção nisso, só pensava no próximo livro que iria
comprar. Conheci Paris com Balzac, Praga com Milan Kundera, a Rússia com
Dostoievski, e muitos outros lugares. Me tornei homem viajado. Construí no
fundo de casa uma cabana, para imitar Crusoé. Adorava passar o dia lá, viajando
pelo mundo.
A essa altura, já passava algum
tempo conversando sobre literatura com a moça da livraria. Um dia cheguei lá e
havia uma placa dizendo que estavam precisando de funcionário. A moça me
incentivou e eu me inscrevi para a vaga, mas o que eu colocaria no meu
currículo? “Experiência profissional: ladrão de chocolates e bolsas”. Não
passaria mais da porta da loja. Então tive uma ideia, escrevi: “Experiência
profissional: Leitor inveterado”. Na entrevista usei muitas palavras rebuscadas
que havia aprendido nos livros, principalmente nos de Machado de Assis. Parece
que convenci, consegui o emprego. O movimento da loja era mediano, não são
muitas as pessoas que apreciam livros, quanto mais usados. Mas eu era um bom
vendedor, contava as histórias de um jeito que incitava a curiosidade das
pessoas e dava dicas de leitura.
Após alguns anos, me casei com a
moça da livraria. E tempos depois decidimos montar nosso negócio: uma livraria
que tinha também curso de redação. Eu já amava tanto a literatura que resolvi
voltar a estudar e cursei letras. Sempre senti vontade de ir à ilha de Crusoé,
buscar resquícios de sua estadia por lá, mas carrego isso como uma fantasia,
sei que toda história é ficção. Talvez meu desejo seja o de voltar para o que
eu era, encontrar ali os resquícios de mim, reconstruí-los. Queria encontrar
aquela moça e devolver a ela o livro que roubei, talvez me desculpar e
agradecê-la pelo “empréstimo”. Contar a ela o final das aventuras de Crusoé e
também das minhas, pois, como disse Drummond, “eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé”.
Isloany Machado, 03 de agosto de
2012.
Muito bom ...Admirável!!!
ResponderExcluirMuito obrigada Nathália!
ExcluirNossa! perfeito.
ResponderExcluirObrigada forasteiro! =D
Excluirmuito legal, um elogio à transformação!
ResponderExcluirValeu pelo comentário Eduardo!
ExcluirAbraço
Isloany,esse conteudo foi incrivel,, Parabens béla postagem..abraços
ResponderExcluirSergio, você é sempre muito gentil. Muito obrigada!
ExcluirAbraços