Uma filha, a Alice, vivia no país
das maravilhas, morava no exterior e trabalhava em uma grande empresa
multinacional. Filomena já visitara sua filha Alice algumas vezes no exterior,
mas poucas ainda em comparação à grande saudade que sentia da época em que a
filha chorava em seu ombro por causa dos desgostos de namorados. A segunda
filha, Regina, era sonhadora, mas daquelas que sonha, sonha e as realizações
são colocadas em pedestais e se tornam impossíveis de realizar. Regina passava
a vida a se queixar de suas desrealizações. À época da história, já não morava
mais em casa da mãe, casara-se com um homem bem poderoso e vivia os sonhos dele
agora, mas morava não tão longe da mãe como Alice. Mas e o marido de Filomena?
Era o que eu perguntava pra minha mãe. Ah, este deixara muitas lembranças.
Todas as noites, Filomena
trancava-se num quarto esquecido da casa, era uma espécie de museu. Lá havia
não só as lembranças, que não dá pra tocar, mas ficavam as coisas que Filomena
cuidadosamente guardara ao longo da vida. Aos 70 anos ela tinha medo de esquecer
daquilo que vivera. Na verdade ela sempre teve medo de deixar as coisas irem
embora por medo de esquecê-las. Como não podia encaixotar as filhas e nem o
marido, decidira guardar todos os objetos que coubessem no quarto. Havia
fotografias em preto e branco; cadernos de todos os anos escolares das filhas;
frascos de perfumes que ganhara do marido e também todos que dera a ele.
Em algumas noites cuja saudade
era apertada, pegava o frasco do primeiro perfume que dera e ele metia no
borrifador o nariz cravejado de pontos pretos e arqueado pelos anos. Tentava
identificar ali o cheiro das primeiras sensações que tivera ao lado dele.
Voltava à memória o frio na barriga que sentia ao esperá-lo para irem ao
cinema. Ele chegava exuberando o perfume que ela lhe dera, chamava-se “O
Barril”. Ah, também estavam lá todas as bonecas das meninas, umas cujo cabelo
já virara sabugo, outras que o olho não fechava mais, outras ainda que perderam
as pernas; havia óculos e relógios quebrados; revistas velhas da época em que o
guaraná ainda era de rolha.
Pegava uma boneca sem perna e
lembrava que fizera papinha para que Alice alimentasse sua “filha” e costurara
roupinhas com retalhos de suas costuras. Em duas caixinhas de metal guardava os
dentes de leite das filhas. Quando suas mãos quase descarnadas tocavam um dos
dentinhos, imediatamente vinha-lhe à memória a cena em que Regina estava com o
pivô mole e não a deixava arrancar. Um dia, voando pelo corredor ao ouvir o
chamado da mãe para o almoço, tropeçara e fora de boca no chão. O pivô saltara
longe.
Nos cantos escoravam-se móveis
quebrados, esfarelentos. Cartas, cartões, postais, convites de casamento,
memoriais de falecimento, de nascimento, de aniversário de 15 anos, de
formatura, habitavam uma caixa grande que tinha cheiro de tempo quando passa
voando. Em três grandes malas de couro estavam guardadas roupas da época em que
Filomena era jovem, que já não serviam mais; e mais um monte de outras
velharias incontáveis estavam naquele lugar. Minha mãe contava que o quarto tinha
um cheiro diferente, era o cheiro do bolo de fubá que as meninas gostavam, ou
era o cheiro do café que acompanhava o bolo, tudo misturado.
Filomena passava horas da
madrugada manuseando os objetos, assim, acreditava tocar as lembranças,
puxá-las pelas orelhas. Como eu disse, ela tinha medo de jogar todas aquelas
coisas fora e suas lembranças um dia lhe faltarem. Só esquecia o quarto dias e
dias com a porta trancada quando estava a família toda reunida, na festa de ano
novo. Daí as lembranças pouco importavam, ela podia tocar o barulho que seus
netos faziam quando arruaçavam pela casa. Filomena não tinha esse nome à toa, a
raiz de seu nome era comum com a da filosofia. Filomena era quase filósofa, ela
sabia que há lembranças e há coisas, quando ia ao quartinho fazia o exercício
de juntar as duas.
Mas havia algo para o que ela não
conseguia fazer a união entre lembrança e coisa, na verdade esse algo era uma
espécie de síntese entre as duas. A síntese era a palavra saudade, que Filomena
não conseguia tocar. Um dia minha mãe contou que gostava muito de brincar de
esconde-esconde com seus irmãos na infância e, sem querer, disse que o lugar
preferido era um certo quarto esquecido e proibido da casa de sua avó, onde
nunca ninguém a encontrava.
Isloany Machado, 31 de maio de 2012.
Que lindo texto!!!
ResponderExcluirDizem que viver é acumular saudades...
ResponderExcluirBelo texto