Meu
querido,
Estava
com muita vontade de te escrever para saber como está. Aqui, de minha parte,
estou com imensas saudades. Mas disso você já sabe, não é? Foi do que falamos
na última carta. Saudades, amores, amizades, sentimentos humanos inventados
para sublimar dores, ódios, perdas, solidões...Há mais sentimentos humanos,
muitos mais, por ora são estes os que já conseguimos falar um pouco. Mas sabe
Henrique, há uma coisa que foi inventada também, que eu nem sei se posso chamar
de sentimento, mas essa coisa se chama intolerância. Vou tentar te explicar
isso usando um exemplo.
Por
esses dias, o lugar em que eu moro, se chama Estado de Mato Grosso do Sul,
decidiu na justiça (pergunte o que é isso à sua mãe) que pessoas do mesmo sexo
podem se casar oficialmente. Bem, como você chegou ao mundo há apenas quatro
meses, imagino que ainda não saiba dessas coisas de amor entre as pessoas. Vou
tentar resumir. Quando nascemos temos um órgão que inicialmente nos identifica
como sendo do sexo feminino ou masculino. Logo que sua mãe for trocar sua
fralda, olhe para o meio de suas pernas. É seu fazedor de xixi. Você já deve
tê-lo visto. O fazedor de xixi das meninas é diferente do seu, mas fica ali
também na mesma região do corpo. Além dos fazedores de xixi diferentes, há
outras partes internas, por exemplo, as meninas tem um órgão que se chama útero
– era sua casinha antes de nascer, lembra? – e outras coisas que diferenciam as
pessoas do sexo feminino e do masculino. Mas isso não basta para definir se
vamos gostar, ou ainda querer viver juntos, de pessoas do sexo oposto ao nosso
ou do mesmo que nós. O que define isso é de outra ordem, algumas pessoas chamam
de orientação sexual, eu gosto de pensar que também está no campo da linguagem.
Nós não gostamos só e somente só do órgão sexual das pessoas, aliás, gostar
exclusivamente de determinado órgão pode até ser um tipo de fetichismo – quando
você crescer um pouco mais te explico o que é isso. Nós, que inventamos o amor,
a saudade e etc., gostamos das pessoas e não de partes do corpo delas. Assim,
se gostamos de pessoas, isso abre outras possibilidades que não ficam restritas
a casais de homem-mulher, porque pode haver amor entre homem-homem,
mulher-mulher. Parece simples, não é? Mas não, não é. Você vai entender melhor,
pois vou voltar ao exemplo que eu ia dar para explicar a você o que é a tal
intolerância.
Eu
estava em um salão de beleza justamente um dia depois que o casamento entre
pessoas do mesmo sexo foi autorizado. A televisão estava ligada e o telejornal
dava a notícia da autorização. Foi quando uma mulher, cliente do salão, começou
a fazer chacota do caso: “agora só vai dar biba e sapatão indo na delegacia da
mulher fazendo queixa ‘ai, minha mulher me bateu!’”. Disse isso e mais outras
coisas que nem me lembro e nem faço questão de lembrar. As pessoas riram e
concordaram com o que ela falou, outra ainda afirmou: “agora vão querer exigir
os direitos”, e torceu o nariz. Eu fiquei olhando a cena. Às vezes Henrique, me
sinto covarde por não dizer o que penso em situações assim. Eu queria ter
perguntado o que tanto incomodava aquelas pessoas, que diferença faria na vida
delas se dois homens ou duas mulheres se casassem? Por que tanto ódio? E quando
na televisão falaram sobre adoção de crianças por casais do mesmo sexo? Melhor
nem entrar em detalhes, podemos falar disso melhor outro dia.
“Mas
tia, parecia tão simples quando você explicou, porque as mulheres ficaram
bravas no salão?”. É o que você deve estar se perguntando. Pois é Henrique,
isso não é simples e não acontece somente nesses casos. Quero dizer que não são
apenas estas pessoas que sofrem com a intolerância dos outros. Meu querido, há
muito mais a dizer. Deixe-me ver por onde eu começo.
Cor
da pele/”raça”/etnia. Você sabia que alguém um dia disse que as pessoas que têm
a pele branca são melhores que as outras? Sobretudo melhores do que as negras?
Esse alguém que disse isso, certamente era poderoso, cheio de dinheiro e dessas
coisas que, muitas vezes, infelizmente, definem quem é melhor do que quem. Um
dia te explico o que é isso chamado dinheiro. Mas essa pessoa que afirmou ser
melhor que os outros por ser branca/ariana, baseou-se em estudos que afirmavam
categoricamente serem algumas pessoas melhores do que outras. Vai entender.
Religião.
Henrique, você sabia que as pessoas se matam por causa de religião? Agora me
diga como vou te explicar o que é religião? Por enquanto só posso te dizer que
há muitas no mundo todo e uma mais diferente que a outra, com um conjunto de
crenças próprio. Algumas acreditam em um deus, outras em vários, para outras,
deus está em todos os lugares e diluído nas coisas da natureza. Ou seja, cada
um acredita num deus que seja a melhor imagem e semelhança de si próprio.
Muitas pessoas tiram da religião a força para viver, isso não deixa de ser
nobre. Sabe por que Henrique? Porque “viver não é fácil”, lembra dessa frase do
senhor Guimarães Rosa que te falei outro dia? Cada pessoa tira força para viver
de algum lugar. Outro senhor chamado Freud disse que a religião é um dos
lenitivos da humanidade. Mas há vários lenitivos usados pela humanidade, alguns
são vendidos em farmácias, lá onde sua mãe compra pomada pra evitar suas
assaduras. O problema não é haver várias religiões, isso é de menos, o grande
problema é que cada uma afirma ser a sua própria religião A verdadeira. Daí
começam a brigar pra querer convencer os outros de qual é a verdade: se deus é
um, dois, três, vários; se santos existem ou não; se deus é branco, preto,
amarelo, com cabeça de elefante, com olho puxado, azul, verde, castanho; se no
céu tem mulheres virgens, se é tudo de ouro; se os terrenos celestiais melhores
localizados estão com o preço muito alto; e por aí vai. Ou seja, algumas
pessoas sofrem intolerância por terem religião, outras por não terem. Percebe
como as pessoas estão o tempo todo disputando alguma coisa, brigando por alguma
coisa? Cada um briga por sua certeza. A certeza é o gérmen da intolerância. A
intolerância é o gérmen da guerra.
“Tia,
o que é guerra?”. Meu querido, guerra acontece quando essas disputas diárias e
por diversos motivos, muitas vezes estúpidos, tomam grandes proporções. Quando
as disputas crescem tanto que não cabem mais no espaço de uma casa, de uma
igreja, de uma cidade, de um Estado, de um País, acontece a Guerra. Eu só sei
te dizer que muitas e muitas pessoas já morreram por causa disso: judeus,
homossexuais, negros, índios, paraguaios, soldados brancos e mais um monte de
gente que nem sei se cabe nesse papel. Essas pessoas que eu disse primeiro, os
judeus, foram mais de seis milhões de mortos numa guerra estúpida que envolvia
disputas de poder e de mais outras coisas. Henrique, coloque uma coisa na sua
cabeça: todas as guerras são iniciadas por motivos estúpidos de disputas de
poder.
Sabe
Henrique, uma coisa que me intriga até hoje é tentar entender como nós seres
humanos somos capazes de inventar o amor, a saudade, a amizade, a confiança, a
fé, a solidariedade, como somos capazes de nos colocar no lugar do outro quando
acontece uma tragédia, quando pessoas morrem, e ao mesmo tempo somos capazes de
matar milhões de pessoas para defender que nossa cor de pele é melhor do que a
dos outros, que nosso deus é mais verdadeiro que o dos outros, que nossa
escolha amorosa, hetero ou homo, é mais legítima que a dos outros. Me intriga
tamanha incoerência. Mas sabe, meu querido, somos seres incoerentes desde que
habitamos a linguagem, isso não quer dizer que devemos aceitar as
intolerâncias, começando pelas nossas próprias. Henrique, duvide sempre das
verdades, das certezas, lembre-se que elas são as melhores amigas das
intolerâncias e das guerras. Duvide de suas próprias certezas, sempre, por mais
que às vezes isso seja doloroso, pois todos precisamos de lenitivos. Faça com
que suas certezas sejam construídas no respeito ao outro, mesmo que para isso
você tenha que lutar sempre contra você mesmo.
Um
beijo. A titia te ama.
Isloany
Machado, 08 de abril de 2013.
P.S.:
Lembrei de te contar que no dia em que ouvi as pessoas indignadas no salão de
beleza com a autorização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, à tarde caiu
uma chuva gostosa e depois dela eu olhei pro céu e vi um arco-íris. Pensei que
algum deus devia estar feliz com a notícia.
lindo texto sobre os paradoxos do ser humano, que só muda se passar por um sofrimento. no caso do julgamento dessa mulher, mudaria, se visse o seu filho sendo julgado, sofrendoa dircriminação
ResponderExcluirObrigada pelo comentário! Abraços.
ExcluirSimplesmente emocionante!!!!! Parabéns pelo dom da palavra. Lúcia Lima
ResponderExcluirObrigada Lúcia!!!
ResponderExcluirAbraço
Isloany,
ResponderExcluirLi o seu texto e achei fantástico. A maneira que você expôs sua opinião de uma maneira simples, mas nem por isto menos informativa. Acredito que mais pessoas deveriam pensar desta maneira. Realmente, é triste como as pessoas se importam tanto com algo que nem desrespeitam a elas mesmas.
Ben, obrigada pelo comentário!
ExcluirGrande abraço.
Lindo Isloany.
ResponderExcluirSim, acho que todos eles gostaram!
Sim Maria Inês, se todos eles forem bons, todos gostaram!!! ;)
ExcluirJá chegou seu livro?
Isloany, você descreve sobre a intolerância com muita coerência e didática, postei em meu face e espero que muitas pessoas leiam e reflitam, nós temos o dever de pelo menos tentar mudar o pensamento e o comportamento da humanidade, precisamos deixar um mundo melhor para nossas crianças. Um grande abraço.
ResponderExcluirMariângela- Psicóloga clínica-saúde pública.
Mariângela, obrigada pelo comentário! Também acredito que temos que tentar deixar alguma herança para os que vierem.
ExcluirGrande abraço.