Esses dias estava lendo um texto
pedagógico que falava da importância de se ter disciplina e organização dentro
de casa, pois isto auxilia na boa educação para os filhos. Um dos exemplos
citados foi: “não deixar livros espalhados pela casa”. Não pretendo fazer aqui
uma crítica a qualquer teoria ou método pedagógico, quem sou eu para dizer
qualquer coisa do tipo, mas essa história de não poder deixar os livros
espalhados pela casa me magoou profundamente. Eu sempre gostei de livros em todos
os lugares da casa. Tudo bem, minha mãe me dava broncas sim por causa disso,
mas preciso explicar isso melhor.
Meu pai, durante a minha
infância, era vendedor, de livros. Era tão bom vendedor, que foi promovido a
supervisor de vendas. Como poderia não haver livros por todos os lugares da
casa? Além disso, minha mãe era professora e ganhava livros das editoras. Mas
em nossa casa não havia um espaço exclusivo para biblioteca. Digamos que ela
fosse itinerante, estava em vários lugares. O pai dizia que era muito
importante ler. Ele lia e fazia com o livro uma coisa que eu odiava: riscava as
palavras separadamente, não a ideia inteira. Quando eu pegava um livro que meu
pai já tinha lido, as palavras marcadas ficavam flutuando na minha frente e eu
não conseguia apreender o sentido das frases. As palavras criavam pernas e eu
as via dançando ciranda.
Minha mãe tentava organizar tudo
num lugar só durante o final de semana, mas com a passagem dos dias, depois da
quarta-feira, todos estavam fora do lugar. Mãe ficava fula. Ela arrumava e
tinha eu, meu pai e minha irmã pra tirar do lugar e não devolver mais. O que
podíamos fazer? Os coitados não podiam ficar lá, soterrados uns sob os outros,
sem conseguir respirar, sem poder contar suas histórias! Depois que tive a minha
casa, separei um canto para os livros, mas não sei o que acontece, eles não
param lá assim organizadinhos. Em todos os cômodos há um montinho deles.
Desconfio que têm pernas. Naquela época, os livros da minha mãe me interessavam
mais que os de meu pai, mas todos eram muito técnicos, não havia muitos de
literatura. E, enquanto não podia comprar, meu refúgio era a sala de leitura da
escola.
Uma vez por semana, a professora
da primeira série nos levava para a sala de leitura. Ainda me lembro quase como
se fosse ontem. Havia essa sala na escola na qual passávamos uma mísera hora da
semana. As estantes eram cheias de livros infantis e no chão estavam esticados tapetes
grandes com várias almofadas para que nos acomodássemos bem. Foi um ano letivo
inteiro, mas eu tenho apenas a lembrança de um livro. No primeiro dia,
selecionei um que me chamou a atenção, ele tinha capa dura e a imagem estampada
nela se mexia. Não sei o nome daquele efeito que se cria quando uma imagem fica
sobreposta à outra e alternam-se de acordo com o movimento feito. Enfim, era o
livro do Peter Pan.
Era um livro que tinha uma
história comprida, com muitas imagens, e eu não consegui terminar num dia só.
Precisaria de outros dias para fazê-lo. Então o guardei num lugar específico da
estante, do qual me lembraria depois. Mas quem disse que na semana seguinte o
livro estava lá? Demorei uns dois meses para reencontrar Peter Pan. Quando
reencontrei, não lembrava mais do começo e tive que voltar a leitura. Dessa
vez, antes de alcançar a parte que já tinha lido antes, a sirene tocou e eu
tive que deixá-lo novamente.
Passei o ano todo e não consegui
ir até o final do livro, ora porque ele não estava mais onde eu havia deixado
na semana anterior, ora porque eu não lembrava mais onde tinha deixado. Na outra
escola em que fui estudar, não tinha a hora da leitura, porque as matérias
começaram a ficar mais densas e “essa história de hora de leitura é pra passar
tempo”. Obviamente que o mais importante era saber que se escreve jiboia com j,
tigela com g, e decorar a tabuada. Muito mais interessante do que viajar pra
Terra do Nunca.
Carreguei essa história do Peter
Pan pela metade até quando fiquei adulta. Só depois fui descobrir que na Terra
do Nunca, as crianças nunca crescem. Descobri assistindo um filme com minhas
primas pequenas. Depois ouvi falar numa tal Síndrome de Peter Pan, vejam que
agora isso de querer ser criança pra sempre virou síndrome também. Ah, se eu
tivesse terminado de ler aquela história antes, quem sabe teria ficado criança
pra sempre. Mas o que será que me impedia de lê-lo até o fim? Não sei ainda,
mas temo que seja tarde demais. Ouço o corvo de Poe a gritar na minha janela:
Nunca mais!
Tarde demais – Terra do Nunca –
nunca mais! Mesmo quando já podia comprar meus próprios livros, nunca comprei o
do Peter Pan. Acho que todas essas coisas de tempo me assustam, já disse que
não sou corajosa como Alice para querer saber do tempo. Talvez Peter Pan também
denuncie que habitar a Terra do Nunca não é para qualquer um.
Tarde demais
Terra do Nunca
Nunca mais!
Isloany Machado, 14 de outubro de
2012.
Ufa! Não é só na minha casa que os livros têm pernas e estão por toda parte! Que alívio esse seu texto me trouxe. Brincadeiras à parte, parabéns pela forma com que costura as palavras e nos fala de coisas tão pertinentes. Lucia Medina
ResponderExcluirObrigada Lucia e seja bem-vinda!!!
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