Dedicado ao meu querido ginecologista
Sempre
que vou ao ginecologista levo um livro para ler, pois tenho a impressão de que
o tempo passa mais rápido. Às vezes me pego com o livro de cabeça pra baixo.
Não devo mentir. Então, vamos lá. Sempre levo um livro para não ter que falar
nada. Não é que eu seja metida ou coisa assim. Explico melhor. A sala de espera
do meu ginecologista anda sempre lotada: moças, gestantes, idosas, meia-idade,
dentre outras figuras. Todas elas falam ao mesmo tempo. Concluí que a sala de
espera do ginecologista proporciona alguma catarse para minhas companheiras.
Em
um dos dias que esperava, prestei atenção numa mulher de uns quarenta e poucos
anos. Ela estava em pé, conversando com a secretária do médico (esta se configura
como mais um dos motivos do livro que mantenho na cara o tempo todo). Bem, a
mulher dos quarenta e poucos anos conversava com Odete[1],
a secretária. Fiquei impressionada no exato momento em que a mulher disse:
“[...] Márcio estará trabalhando neste final de semana e não poderemos ir ao
casamento de nossa sobrinha [...]”. Nenhum problema com o conteúdo da frase. O
que me impressionou foi a intimidade com que a mulher conversava com Odete.
Será que ela conhecia Márcio, o marido da tal mulher? Odete resignadamente
balançava a cabeça num gesto afirmativo, porém vazio.
Percebi
que as outras mulheres também citavam nomes de pessoas enquanto falavam com Odete.
E ela? O mesmo balouçar de cabeça. Imaginei Odete frequentando a casa de cada
uma das pacientes do médico. Ideia absurda! Claro que não visitava. Às vezes
ela ria de algum comentário de alguma mulher, como se fosse velha conhecida.
Ela sabia da anatomia de quase todos os maridos ali “presentes”. Fazia
sapatinhos de crochê para as gestantes, tricotava cachecóis para as idosas,
trocava receitas culinárias com as mulheres de meia idade.
Uma
senhora cheirando a talco, num dia em que o médico estava demorando muito a
chegar, disse: “Odete, liga pro Doutor, porque Osvaldo deve estar com fome e eu
preciso despachá-lo!”. Ao que Odete respondeu: “Imagina! Osvaldo é despachado,
já deve ter almoçado por aí”. Neste momento, a senhora olhou pra mim, ali
sentada ao seu lado com o livro na cara, e disse: “Ai, como os homens são
chatos! São muito dependentes de nós”. Baixei o livro só o suficiente para
deixar os olhos descobertos e disse: “É verdade, são mesmo”. Dei um sorrisinho
amarelo e ergui o livro, cujo título era Memória
de minhas putas tristes, de Gabriel Garcia Marques. Devo ter passado por
antipática.
Em
um dia que fui a última a ser atendida, um silêncio agudo se fez. Depois de
alguns minutos mergulhadas na quietude, afirmei: “Sabe Odete, estou com uma
certa ardência”. Odete limitou-se a, cretinamente, responder: “Ê guria! O que
andou aprontando?”. Quis matá-la. Nunca mais deixei o doutor chamá-la para
auxiliar nos exames. Tudo bem, depois das putas
tristes e dos meus eternos silêncios, ela deve ter me julgado mal. Mas
achei um jeito de me vingar dela mesmo assim. Releguei-a à ignorância eterna de
minhas questões ginecológicas. Quando saio da sala do médico, percebo o olhar
desdenhoso que Odete lança sobre mim.
Da
última vez que estive lá, ouvi Odete reclamar do salário. Disse que, pelo tanto
que escuta, deveria ganhar mais. Ela trabalha ali há trinta anos. Antes mesmo
que eu nascesse Odete já estava ali. Ressenti-me por não conseguir falar com
ela da minha vida, do marido, do cachorro, da casa nova, dos planos de ter
filhos. Me sinto completamente estranha para Odete, acho que ela nem sabe falar
meu nome. Queria que ela me dissesse um dia desses: “Ah, nem se preocupe com a
viagem do final de semana, eu coloco comida pro seu cachorro. Diga ao Ramos que
deixe dinheiro para comprar ração”.
Odete
sabe ouvir as pessoas. Pronto, está feito! Da próxima vez não levarei livro
nenhum. Vou contar minha vida pra ela. Deixarei que entre na sala do médico
durante o exame. E na saída, ao invés do costumeiro e seco “Até mais”, direi a
ela: “Odete, te espero amanhã para o café da tarde”.
Isloany
Machado, 05 de fevereiro de 2013.
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