Fonte da imagem: http://www.saplei.eesc.usp.br/~gabrielat/images/stories/adao02.jpg
O homem é um bípede implume. Platão
Apesar
de possuírem um olhar que nos soa como vazio, já que parecem olhar para o nada,
eu não seria capaz de dizer que uma galinha não tem sentimentos. Ainda que não
possua o roça-roça do gato e o lambe-lambe do cão, uma galinha pode bem ser um
animal de estimação, como tantas que vemos espalhadas pelos quintais de casas
de bairro. Mesmo despertando, sem que precise se esforçar muito, a afeição das
crianças, uma galinha sempre pode ser o alvo de uma faca afiada nas mãos de um
adulto. Tenho a impressão que uma galinha olha para o nada para disfarçar que
olha tudo, medida de proteção e sobrevivência. Uma galinha é um animal
doméstico que precisa lutar dia após dia para sobreviver. Foi pensando em tudo
isso que Cocota sempre buscou ser uma galinha diferente das outras. O que ela
queria era ser vista como outra, como algo além de um pedaço de carne. Cocota
se autodenominava galinhista, para se contrapor aos egocentristas – humanos que
se acham muito melhores do que os outros animais e não têm o menor respeito
pelo direito deles.
Ela
morava na casa de uns humanos bastante intelectualizados, que gostavam muito de
livros. Em sua busca de igualdade de direitos, Cocota percebeu que precisaria
estudar muito para poder argumentar com os humanos, não somente com os donos da
casa, mas com outros. Cocota era ambiciosa. Seus dias eram como o de todas as
outras galinhas, andava de um lado a outro com seu olhar calculado para o nada.
Porém, à noite Cocota visitava a biblioteca dos humanos com a ambição de ser
tão eloquente quanto eles.
Nos
dias em que os humanos não estavam em casa, ela ensaiava discursos de igualdade
com as outras galinhas, que também sabiam dos riscos que corriam, mas estavam
mais preocupadas em botar ovos. Cocota gostava tanto de falar que sequer
percebia que as outras não estavam interessadas em seus discursos. Lutava por
liberdade, igualdade e fraternidade, mas não sabia exatamente o que faria com
sua liberdade, nem o que isso significava. Quanto à igualdade e à fraternidade,
bem, ela se sentia meio diferente das outras galinhas e não sabia muito bem se
queria ser igual a elas. Era tudo muito confuso para Cocota, mas fora assim que
aprendera nos livros. Às vezes espremia o pensamento para ver se conseguia
entender os objetivos de sua luta, porém o que acabava saindo era um ovo a
rolar cloaca afora.
Os
donos de Cocota, que eram muito intelectualizados, logo notaram que ela era
diferente das outras galinhas. Mesmo que ela tentasse disfarçar, com medo do
fio de alguma faca, eles perceberam que ela gostava de comer os ovos das outras
galinhas, ao invés do milho e das rações diárias. A dona da casa alforriou
Cocota: “Vamos mandar essa galinha pra longe daqui, está destruindo os ovos!”.
Eles tinham a política de não matar galinhas, isso iria contra seus princípios
éticos, mas as galinhas não sabiam disso e esperavam sempre o dia fatal. Assim
foi que Cocota ganhou sua liberdade e ficou eternamente grata àqueles humanos
tão complacentes.
Ela
saiu de lá com um desejo imenso de lutar pelos direitos das galinhas, estava
muito determinada mesmo a ser uma revolucionária. Um dia Cocota, que nunca
havia visto sua própria imagem refletida num espelho, ao passar pela vitrine de
uma loja demorou alguns instantes para se reconhecer, para saber que era de si
que se tratava no vidro a sua frente. Cocota não gostou do que viu, achou que
aquelas penas não lhe ficavam bem. Lembrou-se do quanto achava sua dona bonita
com aquela pele lisa e amarelada. Dentro de alguns minutos, num esforço e dor
sobregalináceos, estava sem nenhum resquício de pena. Voltou a olhar no espelho
e achou bem melhor, poderia fazer uma tatuagem na asa, sempre sonhara com isso.
Com alguns trapos que encontrou, fez uma espécie de vestido para cobrir suas intimidades.
Assim compôs seu visual o mais próximo possível que pode da imagem tão sedutora
de sua antiga dona, aquela mesma que lhe dera alforria. Em um esforço sublime
de pensamento, Cocota concluiu que aquilo sim era igualdade. Agora era outra,
em nada parecida com um pedaço de carne, e poderia lutar pelos direitos de suas
irmãs, realizando assim o triângulo “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Cocota
não sabia bem o porquê, mas não se sentia livre e sempre que pensava nisso
acabava botando um ovo e logo esquecia o assunto. O mais importante era que ela
se sentia igual, mas não sabia igual a quem. Cocota era ambiciosa e esperta, o
bastante para um galinha, é claro, porém não o bastante para se livrar de um
humano faminto. Acostumada com a liberdade/igualdade, esqueceu-se de usar seu
olhar para o nada/tudo e acabou desenvolvendo um olhar vazio mesmo, um olhar de
quem nunca está satisfeito, bem parecido com o dos humanos. Cocota já nem se
lembrava ser galinhista, ela só sabia que lutava por alguma coisa que já não
sabia o que era. Em um dia qualquer, no qual acabava de sair do salão em que
arrumara as unhas, Cocota foi apanhada por um garoto e levada para uma casa
feita de lona, bem diferente daquela em que vivera. Quando viu a faca, botou um
ovo e ainda teve tempo de pensar: “Viva a Revolução!”.
Cocota
não morreu triste. Em seu último lampejo de vida, pode ter a certeza de que
todos são livres, iguais e irmãos, sejam humanos ou galinhas. E que a ética de
cada um é..., bem, a ética de cada um é de cada um e pronto, foi o que ela
concluiu antes de se consolar com o fato de que estava sendo um pedaço de carne
bem melhor que os outros, pois mataria a fome de uns humanos cujo olhar parecia
o dela quando não era livre, aquele que mirava o nada e ao mesmo tempo tudo como
forma de sobreviver. Nos tempos em que estudava na biblioteca dos antigos
donos, lera histórias de humanos que matavam outros humanos e nem era para
comer. Na época achou isso absurdo, mas depois esqueceu. Antes de morrer pensou
ainda que sua carne teria servido para um nobre motivo fraterno. Assim fechava
o triângulo pelo qual tanto lutara.
Isloany Machado, 17 de março de 2013.
Interessante o texto, mostrar ideias de bichos... me lembra o livro A revolução dos bichos. Parabéns (:
ResponderExcluirUma pessoa também disse que lembra o filme "A fuga das galinhas" :)
ExcluirAbraço e obrigada pelo comentário!
muinto bom seu blog
ResponderExcluirObrigada pelo comentário!! Fico feliz que tenha gostado.
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