*A
história do dia em que conheci Manoel de Barros. Como dizia ele, “só dez por cento é
mentira”.
Confesso que não queria contar.
Mais pelo ridículo da cena do que por causa de qualquer outra coisa. Eu nunca
consegui ser tiete de nenhum artista famoso, nem na adolescência, época em que
as meninas escolhem seus ídolos e estampam seus rostos em todas as paredes do
quarto. Uma vez, aos treze anos até tentei seguir a tietagem de uma amiga que
era muito fã de dois grupos musicais e de Leonardo Dicaprio. Minha mãe comprou
um discman pra mim e mais os dois
cds, decorei todas as músicas, mas, assim que minha amiga mudou de cidade, o discman ficou esquecido num canto.
Quanto ao Dicaprio, comprei uma revista cuja capa estampava “Leonardo de A a Z”,
no meio vinha um pôster dele, mas sequer colei na parede. Certa vez minha mãe
viajou e encontrou no aeroporto um ator global, chegou feliz em casa dizendo
que havia conseguido pra mim o autógrafo do ator fulano de tal, que eu nem
sabia quem era. Assim foi que nunca tive a capacidade de me emocionar com
nenhum artista.
Descobri
que gostava muito de José de Alencar, Machado de Assis, Jostein Gaarder. Mas os
dois primeiros já estavam mortos e o segundo, autor de “O mundo de Sofia”,
morava na Noruega. Longe demais para uma menina de 15 anos. Contentei-me,
portanto, em amar suas obras e colocá-las em minha estante de lata. A primeira
vez que li Manoel de Barros foi aos 17. “Livro sobre nada”. Achei legal, bem
diferente e confesso que tive um pouco de dificuldade para entender. Depois
emprestei pra alguém e nunca mais me devolveram. Dia desses, quase dez anos
depois, comprei as obras completas de Manoel de Barros e mais suas Memórias
Inventadas. Fiquei maravilhada com todo a desaprendizagem que tive, pois andava
angustiada às voltas com a importância do saber, que não me julgava capaz de
alcançar.
É
claro que os estudos de psicanálise me fizeram ler Manoel com outro olhar. E
que coisa maravilhosa pude encontrar em cada um de seus poemas. Foi mais um
autor daqueles que me tornei admiradora. Não sei por que cargas d’água
imaginava que ele morasse em algum lugar longínquo no meio do Pantanal. Na
verdade sei sim, é porque ele fala de sua infância, toda vivida e inventada lá
por aquelas bandas. Coloquei-o na estante junto com meus outros ídolos: Balzac,
Flaubert, Drummond, Dostoievski, Marguerite Duras, Lacan, Freud, Aluísio
Azevedo, Lispector, Cecília Meireles, Milan Kundera, entre outros que, se não
tinham partido ainda, moravam muito longe daqui. Talvez em meu imaginário esses
ídolos fossem muito inalcançáveis, pelos motivos que já disse. Para alguns
deles até já escrevi cartas, mas nunca pude enviá-las, pois não teria o para
onde. Escrevi também uma para Manoel, agradecendo por me ajudar a aliviar as
angústias que sinto no contato com a ciência.
Alguns
meses depois, lendo uma reportagem sobre ele, descobri que ele morava aqui na
mesma cidade que eu. Não pude acreditar. A primeira coisa que pensei foi em
descobrir o endereço e mandar-lhe a cartinha. Descobri seu endereço, mas tive
que esperar, pois acabara de fazer uma cirurgia que me causou algumas tantas
dores e tive que repousar. Com algumas complicações na tal cirurgia, confesso
de leve que tive medo de partir. Depois que o medo passou, na primeira ocasião
em que saí de casa (ida ao médico), levei a carta comigo e uma máquina
fotográfica. Durante os dias cinzas do repouso, confabulei fazer uma visita a
Manoel, conhecê-lo, dizê-lo que o amava e a seu trabalho, mas tentei tirar a
ideia da cabeça, posto que ninguém vai à casa dos outros assim sem conhecer.
Aliás, que ideia absurda a minha. Mesmo assim levei a máquina fotográfica.
Fui
ao médico e em seguida postei a carta no correio. Mas agora eu sabia o endereço
dele e a ideia maluca não me saía da cabeça. Então pensava: “Isso é ridículo,
não vê? Quem é que bate na porta de Manoel de Barros e diz ‘oi, eu queria
conhecer o poeta?!’?”. Por outro lado pensava: “O que você tem a perder? No
máximo receberá um não como resposta! Você pode bem lidar com um não!”. Ah, que
ideia ridícula! Ah, que ideia sem jeito! Entrei no ônibus. Quando ia me
aproximando do ponto próximo às imediações da casa dele, automaticamente dei o
sinal para descer. Desci. Com o mapa impresso na minha memória, segui
caminhando. Eu ainda estava meio troncha por causa da cirurgia e tinha que
caminhar devagar. Parei, pensei em voltar, mas era tarde demais. Pensei: “It’s now or never!”, sim, é agora ou
nunca! Não tenho nada a perder. Esse meu ídolo está vivo, eu preciso vê-lo.
Continuei andando com certa dificuldade por causa da dor. Mas a cada passo ia
me aproximando dele.
Cheguei
em frente à uma casa que supus ser a dele, o número não estava lá, mas pela
sequência da rua, só podia ser ali. Toquei o interfone:
- Oi?!
- Essa casa é número XXX?
- Sim.
- É a casa do poeta? Disse eu com a voz embargada.
-Sim. Quem é?
- Ah, eu mandei uma cartinha pelo correio, eu não
ia vir aqui, mas foi mais forte do que eu. Queria conhecê-lo, tirar uma foto,
falar um oi...
- Espere aí.
Fiquei
um tempo ali, não sei exatamente quanto, mas durante todo ele uma vinheta
repetia-se na minha cabeça: “Manoel de Barros, cadê você? Eu vim aqui só pra te
ver!”. Ri do meu ridículo. Em seguida a voz voltou. Eu não estava acreditando
no que estava fazendo.
- Como é o seu nome?
- É Isloany.
- Eu vou abrir o portão.
Meu
coração começou a pular, as mãos tremeram. Entrei, e não conseguia enxergar
direito. Avistei uma senhora caminhando lentamente de bengala. Me aproximei
devagar e ela me perguntou como era mesmo a história.
- É que eu escrevi uma carta, mas é certo que ainda
não chegou porque eu coloquei hoje no correio...
- É, não chegou ainda...
- Eu só queria dizer oi. Você é esposa dele?
-Sim.
- Como é seu nome?
- Stella.
Ela
segurou em meu braço para firmar seus passos e me conduziu até a sala. No
caminho me disse que ele estava com muita idade e que não escutava muito bem.
Chegamos à sala e ele estava lá sentado tranquilamente em um sofá de tecido
estampadinho. Comecei a chorar. Disse oi pra ele e me atrapalhei toda. Fiquei
com receio de parecer maluca, mas eu já estava lá mesmo. Eu chorava. Stella
dizia: “não precisa chorar”. Eu respondia: “é que eu estou emocionada, muito
emocionada”. Compreendi imediatamente as adolescentes que choram e gritam
diante se seus ídolos. Logo eu que sempre achei tietagem uma coisa bastante
ridícula, estava aos prantos diante dele. Eu só não gritei por respeito à sua idade,
mas foi por pouco e tive que conter o grito na garganta. Perguntei se podíamos
tirar uma foto e disse que sim. Eu chorava e ele ria de mim. A máquina pifou,
acabou a bateria justo na hora da foto. Eu disse, tudo bem, não tem problema,
guardarei na memória. Foi a funcionária deles, muito simpática, que lembrou do
celular:
- Não dá pra tirar com o celular?
Santa
funcionária! Ele me disse: “Pode sentar aqui do meu lado, pode me abraçar”. Eu
só não dei pulos porque estava impossibilitada pela cirurgia. Sentei e tiramos
duas fotos. Eu peguei na mão dele e disse que gostava muito do seu trabalho. Ele
me fez perguntas e eu me atrapalhei pra responder.
- Você é daqui mesmo?
- Sim, sou daqui. Digo, não, sou de Cuiabá, mas vim
pra cá estudar e não voltei mais.
- Eu também sou de Cuiabá - disse ele, como se eu
já não soubesse. É professora?
- Não. Sou psicóloga. Estudo Lacan e faço mestrado.
- Mestrado em literatura?
- (...) Sim.
Toda
atrapalhada que estava, fui juntando minhas coisas para ir embora, pois não
queria incomodar mais. Dei-lhe um beijo estalado no rosto, abracei sua esposa e
me despedi, dizendo novamente que amava seu trabalho. É possível imaginar o
estado em que saí de lá, ainda troncha. Foram poucos minutos, mas cada um deles
valeu à pena. Fiquei com medo de parecer maluca, tanto para ele, quanto para as
pessoas que leem minhas histórias. Mas toda tiete parece meio maluca mesmo. E o
que eu tenho a perder? O que precisei me haver depois foi com o tal mestrado em
literatura...
Isloany Machado, 04 de agosto de
2012.
Que lindo! Me lembra a vez em que estive cara a cara com o Augusto Cury, de quem sou muito fã, e simplesmente fiquei na dúvida se era ele ou não... a timidez foi maior e me contive... Algo de que me arrependo profundamente! rsrsrs Abraços!
ResponderExcluirLindíssima sua história desse encontro...
ResponderExcluirObrigada Stela e Clara pelos comentários!
ResponderExcluirAbraços
Hehehe
ResponderExcluirAh... que cena de um filme, que vida de literatura... adorei. Privilégio o seu... inesquecível. Belo relato. Adorei. Beijo
ResponderExcluirLindíssima história!!!
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