Dedicado à Santa Histeria, que é mais poderosa que
São Recalque.
A ela que nos
obriga a ver com o corpo aquilo que os olhos não querem.
Dias
atrás estava lendo Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Ainda estou. Não
sei se um dia vou poder dizer que acabei de ler. E, aproximadamente, a pouco
mais de uma semana, lia a parte que conta sobre o incêndio que acontece no
manicômio em que os cegos estão confinados, com sua cegueira branca. Confesso
que já estava tendo dificuldades com todas as misérias imagináveis num mundo em
que de nada serve ter olhos se não é possível ver. A cada cena descrita, a cada
lágrima de cada personagem vagando a esmo na solidão de si mesmo, chegando às
raias da inumanidade, da imundície, da exploração, do desespero, por não ser
possível ver, minha dificuldade aumentava.
Mas
se já estava tendo dificuldades na leitura, fui invadida por um mal-estar
depois de ler a cena do incêndio. Devido à cegueira, as pessoas não conseguiam
encontrar a saída. Disse para meu marido “Este livro é difícil de ler, me causa
mal-estar”. Ao que ele perguntou: “Por que não para de ler então?”. “Não
posso.” Afinal, tratava-se de ficção.
Parei
um pouco, respirei, andei de um lado a outro. Fui retomando a leitura aos
poucos, ao longo do passar dos dias, mas o mal-estar não me deixava. Em pouco
tempo, graças ao poder do São Recalque – que nos salva daquilo que não
podemos/queremos ver – esqueci a causa do mal-estar, mas ele continuou, deixou
meu corpo histericamente fragilizado, com uma incômoda dor epigástrica.
Matutei, matutei e concluí “Deve ser a cebola que comi”.
Poucos
dias depois, acordo e recebo a notícia do incêndio em Santa Maria. Meus olhos
custavam a crer nas imagens exibidas pela mídia. Vi as palavras fugirem de mim,
aos tropeços. O que senti foi um soco no estômago, que já não ia lá muito bem
durante a semana. A cena descrita pelos repórteres era igual àquela que havia
lido em Saramago, apenas com uma diferença: a cegueira daquelas pessoas da vida
real que estavam na boate não era branca, era negra. Fechei os olhos, tentei
imaginar. Não consegui. Fui pra longe. Lembrei de um trecho do livro em que a
personagem da mulher do médico – única que não está cega – diz que em um mundo
de cegos, quem tem olhos não é rei, pois enquanto os cegos sentem o horror, o
que tem olhos sentem e veem-no. E eu, que nunca aprendi a rezar, só pensava em
Santa Maria. Santa Maria, “olhai” por
nós.
Me
esforcei tentando levar meus dias normalmente, mantendo longe das vistas o
horror. Não falava do fogo. Não falava nada. Não queria saber. Queria fechar os
olhos e ser transportada para outro lugar, para o lugar exato cravado cinco
minutos antes daquilo acontecer. Eu me calei. Ah, mas meu corpo não me deixou
calar. O mal-estar causado pelo desconforto epigástrico se transformou em uma
cascata de fogo que passou a me consumir por dentro. Quanto mais eu me calava e
fechava os olhos à Santa Maria, mais sentia os efeitos do incêndio em meu
corpo. O fogo saía pela boca, mas São Recalque me fazia continuar culpando a maldita
cebola.
Os
dias foram passando e a leitura de Saramago continuava. Agora os cegos e a
mulher do médico já estavam fora do manicômio, mas o mundo lá fora parecia
ainda reproduzir a loucura da imundície e da indignidade humana. Outra cena
veio como soco no estômago: a mulher do médico – única que vê – guia pelas ruas
os demais de seu antigo grupo do manicômio, quando avista uma matilha de cães a
devorar um homem que acabara de morrer. Ela vomita violentamente diante da
cena. Os outros ouvem e perguntam o que foi. Ao que ela responde: “Algo não me
caiu bem ao estômago”. São Recalque baixou a guarda e eu falou. Não era a
cebola o que me caía mal ao estômago.
O
fogo que me consumia, o mal estar gástrico foi minha forma de significar o
horror de Santa Maria. Por mais que não quisesse olhar, eu via. Por mais que eu
me calasse, minha boca jorrava fogo e fumaça como nunca antes, a ponto de me
paralisar. Nós aqui que vemos, não temos como não olhar, ainda que seja para
não saber como dizer, ainda que nossos corpos falem. Resignei-me e decidi
nomear minha angústia. O fogo arrefeceu, restaram as cinzas. Para aplacar meu
mal-estar usei Saramago. Uma espécie de Salamargo. O mesmo que minha avó dizia
que era bom para a digestão, pra limpar tudo por dentro.
José Saramago
Isloany
Machado, 30 de janeiro de 2013.
[1]
Aforismo de Lacan para dizer que o eu (sujeito inconsciente), fala a verdade do
inconsciente, mesmo quando a boca se cala.
Isloany, muito boa tua reflexão sobre o livro e a relação com o incêndio de Santa Maria e teu mal estar causado pela angústia desta situação.
ResponderExcluirAbraço grande
Isi
Obrigada Isi, você é sempre muito gentil!!
ExcluirGrande abraço
Olá Isloany, gostei muito do seu escrito... Quando li Ensaio Sobre a Cegueira, senti um mal estar muito grande também. Mas, o bacana foi poder me permitir refletir mais sobre simplesmente "ver" e o "enxergar"...
ResponderExcluirAbraço.
Obrigada pelo comentário Renata! E seja bem-vinda.
ExcluirAbraço
O recalque serve para que o sujeito fuja do desprazer e, no entanto, estamos o tempo todo falando sobre a formação de sintomas, sonhos e emergência de conteúdos que guardem relação com aquilo que foi recalcado,,Isloany adorei isso , ''A ela que nos obriga a ver com o corpo aquilo que os olhos não querem.""mas a histeria porque só mulheres tem esse complexo? abraços...
ResponderExcluirNa verdade Sergio, não é que só as mulheres tenham estruturas histéricas, pois se trata de uma estrutura psíquica, homens podem ser histéricos também. Porém é mais comum mulheres terem esta estrutura, que se estabelece a partir das cenas infantis, e todos os mecanismos psíquicos que vão diferenciar a maneira como cada sujeito vai lidar com suas faltas, desejos, sintomas, etc. ;)
ExcluirObrigada pelo comentário!
Abraços
Se esse é o primeiro de 2013, mal posso esperar pelos seguintes... beijos, luciana.
ResponderExcluirO próximo já está disponível Lú! Beijos!!!
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