Esses
dias estive às voltas com um primor de livro chamado Madame Bovary, de Gustave
Flaubert. Um clássico da literatura francesa do ano de 1857, século XIX, portanto.
Quando lançado, causou desconforto e foi acusado de atacar a moral e a
religião. Flaubert foi processado por isso, mas o fato é que o livro acabou
ganhando ibope ainda mais. Considerado
como sendo de literatura realista, teria sofrido influência de Honoré de Balzac
em A mulher de trinta anos. Madame Bovary conta a história de Ema, uma moça
camponesa que estudou num convento, mas não tinha vocação para freira. Era
bela, de cabelos longos e olhos grandes, ambos negros. Ela era graciosa e
inteligente, sabia de música, de literatura, de bordados, da vida parisiense, e
de tudo que uma moça estudada poderia saber à época. Morava com seu pai em uma
fazenda até casar-se com Carlos Bovary, um jovem médico viúvo que se encanta
por ela. Ema queria viver um grande amor, mas depois de casada, não se
reconhece nas grandes personagens que lera nos romances e se decepciona. Seu
marido era um homem simples que trabalhava muito e a adorava, tanto que a
colocava num pedestal. Ema queria mais! Ela queria que sua vida fosse pulsante,
queria ser arrebatada por uma vida tão intensa que a sufocasse de amor, queria
ser amada com paixão. Ela se apaixona por outros homens e não apenas uma vez,
mas ao não sentir mais a máxima expressão do amor, há sempre desencanto e o
desejo mantém-se insatisfeito. Mas eu fiquei encantada com a quantidade de
questões possíveis e passíveis de enxergar nesta obra.
O
primeiro ponto são os aspectos históricos que a literatura desenha aos nossos
olhos. Neste livro, escrito pós-revolução francesa, nas ações de Ema para com
seus amantes, há um excesso, ela compra e compra presentes, roupas, acessórios,
uma infinidade de coisas que leva a família à falência. Faz empréstimos e as
dívidas ficam gigantescas com o abuso da cobrança de juros. Quisera Ema possuir
tudo o que era possível às mulheres da nobreza. Esse ponto marca, com o
nascimento da burguesia, o aumento da oferta de produtos a serem comprados como
possiblidade de suprir uma falta que “não se sabe de onde vem”, e Ema, como
representação máxima do feminino que escancara a falta, tenta também supri-la
com as compras cada vez mais abusivas.
Um
segundo ponto é que o autor faz uma crítica extremamente irônica aos progressos
da ciência e à maneira como os seres humanos mais desfavorecidos são usados de
cobaias. Há um personagem pobre que tem um tendão encurtado já de nascença que
o faz mancar, e Carlos Bovary se mete a consertar o rapaz, tal qual os médicos
estão a fazer em Paris. Mas, talvez pela falta de recursos, o rapaz adquire uma
infecção que quase o leva à morte e é preciso chamar um médico mais experiente,
que lhe amputa a perna toda. O rapaz passa a usar uma prótese da melhor
qualidade, das mais modernas e se cala diante da perda. Em outro momento, que
achei genial, o autor critica pela boca de um personagem chamado Homais,
farmacêutico, o excesso de uso de medicamentos para suplantar os males do
“sistema nervoso”. Ema está enferma, pois sofre grandemente por causa do fim de
seu romance proibido com Rodolfo, e o farmacêutico aconselha Carlos, o marido,
sobre o tratamento a ser dado a Ema, ele diz: “Isso nos prova as
irregularidades sem número do sistema nervoso. No que toca à sua senhora, ela
sempre me pareceu, confesso-o, uma verdadeira sensitiva. Eis porque não lhe
aconselharia, meu bom amigo, nenhum desses pretensos remédios que, sob o
pretexto de atacarem os sintomas, atacam o temperamento. Não, nada de
medicamentos inúteis!”.
O
terceiro aspecto refere-se a uma severa crítica à religião, também expressa
pela boca do farmacêutico: “Eu creio em Deus! Creio no Ente Supremo, num
Criador, qualquer que seja, pouco importa, que nos pôs neste mundo para
desempenharmos os nossos deveres de cidadãos e de pais de família; mas o que
não preciso é ir a uma igreja beijar salvas de prata, engordar com minha algibeira
uma súcia de farsantes que vivem muito melhor do que nós! Porque o podemos
venerar de qualquer maneira, num bosque, num campo, ou mesmo contemplando a
abóbada celeste, como os antigos. O meu Deus é o Deus de Sócrates, de Franklin,
de Voltaire e de Béranger! Por isso não admito um Deus que passeie no seu
jardim de bengala na mão, aloje os amigos no ventre das baleias, morra soltando
um grito e ressuscite ao fim de três dias: coisas absurdas por si mesmas e
completamente opostas, além disso, a todas as leis da física; o que nos
demonstra, de resto, que os padres têm sempre permanecido numa ignorância
torpe, na qual se esforçam por mergulhar as populações.” Imagino o furor que
este livro tenha causado naquela época. Os três aspectos (história, crítica à
ciência e à religião) são o tecido no qual estão escritas as histórias de Ema,
já que sujeito e história não se separam.
Um
quarto ponto que quero comentar da obra é sobre a “alma” de Ema, essa mulher
tão desejosa. Estou ciente de que não alcançarei e não conseguirei expressar
com tantos detalhes que alma é essa, tal é a perfeição com que Flaubert a
descreve, imprimindo em suas palavras um quadro fabuloso de tal personagem
feminino. Ela é uma bela expressão do desejo insatisfeito, na necessidade de
ser amada e de ocupar um lugar de rainha na vida e no coração de um homem. Ema
acredita que sua infelicidade com Carlos seja porque não o ama e porque é um
homem simples demais, que não possui desejos, que não é ambicioso: “Um homem
não devia primar em múltiplas atividades? Saber iniciar uma mulher nos embates
de uma paixão, nos requintes da vida, enfim, em todos os mistérios? Mas aquele
não ensinava, nada sabia, nada desejava. Supunha-a feliz; e ela não lhe podia
perdoar aquela tranquilidade tão bem assente, aquela gravidade serena, nem a
própria felicidade que ele lhe dava.” Ema achava que o amor exige arroubos,
estremecimentos, desassossego. Ela “tinha desejos de viajar, de voltar para o
convento. Ambicionava, ao mesmo tempo, morrer e residir em Paris”.
Ela
ardia de desejos e bastou que um homem em busca de aventuras dissesse palavras
de amor para que Ema se lançasse em seus braços perdidamente. Rodolfo era um
homem que sabia usar bem as palavras, conhecia muito sobre a alma feminina. Ele
sabia do tormento de Ema e mandou essa pra ela: “A senhora não sabe então que
há almas constantemente atormentadas? Precisam alternadamente de sonho e de
ação, das paixões mais puras e dos gozos mais intensos, balançando-se assim a
toda espécie de fantasias, de loucuras.” Ema olha pra ele admirada por saber
tanto sobre ela e pergunta: “Mas por acaso consegue a gente achar a
felicidade?”. O calhordas, digo logo, responde: “Sim, há lá um dia em que
topamos com ela. Um dia, assim de repente, quando já desesperávamos de
encontrá-la. Sente-se a necessidade de fazer-se a essa pessoa confidência da
própria vida, de se lhe oferecer tudo, de tudo sacrificar por ela. Enfim, aí
está o tesouro que tanto procurávamos, aí, diante de nós, brilhando,
resplandecente. Mas duvidamos ainda, não nos atrevemos a acreditar, fazendo-nos
ofuscados”. Ema tenta resistir ao apelo das palavras tão convincentes dele, mas
à sua menor objeção, ele diz: “Não! Por que bradar contra as paixões? Não são a
única coisa bela que há sobre a terra, a origem do heroísmo, do entusiasmo, da
poesia, da música, das artes, de tudo, enfim?”. Antes que alguém pense que eu
não acredito no amor, pelo fato de ter chamado Rodolfo de calhordas, é preciso
dizer que ele, experiente com as mulheres, sabia que são eternas insatisfeitas
em sua maioria, e premeditadamente pensou em seduzir Ema para viver uma boa
aventura com uma bela mulher. A única questão que lhe preocupava era como se
livraria dela depois que se cansasse da aventura. Então, “era a primeira vez
que Ema ouvia tais coisas; e seu orgulho, como quem repousasse numa estufa, se
espreguiçava molemente e todo inteiro ao calor daquela linguagem.” Alguma
dúvida de que o amor é da ordem do significante? Ema apostou demais nas
palavras de Rodolfo como sendo sua salvação. Mas o desejo evanesce e, quando
supomos encontrar um objeto que suplante a falta, ele já não serve: “no fim de
seis meses, quando a primavera chegou, achavam-se reciprocamente como dois
casados que alimentam tranquilamente uma chama doméstica.” Ema não era feliz,
mas se perguntava quem a fizera tão infeliz, onde estaria a catástrofe
extraordinária que a esmagava? Pobre Ema, não sabia que isso nos acompanha
desde muito cedo, a sombra de um objeto perdido, essa tal promessa de
felicidade.
Ela
tentou apostar na capacidade médica do marido, incentivou-o a adotar novas
técnicas da ciência, queria admirá-lo, mas foi quando ele fez a cirurgia que
arruinou a vida do rapaz manco que citei anteriormente. Então, via no marido um
fracassado, desdesejoso, desambicioso. Não conseguia amá-lo. Desta forma, após
o rompimento com Rodolfo, fato que quase a leva à morte, Ema volta a se
envolver com outro homem, Léon. Este era um rapaz que a amava com sinceridade,
mas assim como ocorreu em seu romance anterior, o tempo corrompeu a pureza e a
paixão. O rapaz notou certa estranheza nesta mulher, que não podia suportar nem
por algumas horas estar fora do centro de suas atenções. Ela não amava Léon, o
que ela amava era ser amada, como disse Freud sobre o amor das mulheres. Há
novamente desencantamento entre eles. Mas voltemos às angústias de Ema que,
infeliz, se perguntava: “De onde vinha, pois, aquela insuficiência da vida,
aquele apodrecimento instantâneo das coisas em que se apoiava?...Mas se
existia, fosse onde fosse, um belo e forte, uma natureza valorosa, cheia ao
mesmo tempo de exaltação e de requintes, um coração de poeta com forma de anjo,
lira com cordas de bronze, desferindo para o céu epitalâmios elegíacos, por que
acaso não encontraria ela? Que impossibilidade! Nada, afinal, valia a pena
procurar-se; tudo mentia! Cada sorriso ocultava um bocejo de enfado, cada
alegria uma maldição, todo prazer o seu desgosto, e os melhores de todos os
beijos não deixavam nos lábios senão uma irrealizável ânsia de voluptuosidades
mais intensas.” Ela seguia infeliz, insatisfeita. Não posso dizer mais porque
não posso contar o final da história, é preciso ler este livro.
A pobre Ema apostou demais no amor como forma
de suplantar a falta que nos constitui. Quem poderá julgá-la? Os críticos da
época não aceitaram as maneiras da madame Bovary, era uma devassa. Flaubert diz
algo lindo e verdadeiro em alguma parte do final do livro: “Não é bom tocar nos
ídolos; o dourado pode sair nas nossas mãos.” Assim, a literatura nos ensina,
antes da psicanálise, que não há objeto que satisfaça a pulsão, pois quando
tocamos o suposto objeto, ele perde seu brilho. Ah, se madame Bovary soubesse
disso...
Isloany Machado, 11 de junho de 2012
Às vezes acho que Freud teve muitos insights teóricos a partir de obras como Madame Bovary, O Processo, entre outros. Esse livro é lindo mesmo! ao mesmo tempo empolgante e triste, assim como as mulheres do século XXI, que gargalham ao sofrer...
ResponderExcluirÉ um livro realmente lindo Aninha. E concordo que Freud teve muita influência da literatura, assim como Lacan teve. Obrigada pelo comentário!
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