Foi
no começo do ano passado que tudo mudou. Estava no intervalo de aula com alguns
colegas quando um picolezeiro apareceu em nossa frente. Estava muito calor e
cada um de nós tomou a primeira rodada de picolés. Tudo correu bem. Foi na
segunda rodada que tive a surpresa: havia tirado o palito premiado. Até então,
eu achava que essa história era uma lenda urbana, assim como os contos de
fadas, as histórias de vampiros e magos. Surreais. Mas eis que o palito pulava
na minha frente. Olhei ao redor procurando o picolezeiro, mas ele sumira,
exatamente como fazia o mestre dos magos, da caverna do dragão. Puf! E sumiu.
Fiquei
mais uma vez frustrada, pois não pude requerer meu prêmio: mais um picolé. Junto
comigo estava também outro colega que havia achado o palito premiado. Ficamos
os dois a olhar para o horizonte. Onde havia se metido o sujeito? Decidimos
então guardar os palitos para o próximo dia de aula. Ele voltaria, dado o calor
que nos assolava por aqueles dias. Eu carregava na bolsa um estojo de canetas,
bastante roto, e guardei o palito nele. Meu colega pediu que guardasse o dele
também. Até o final do curso, o picolezeiro nunca mais voltou. Assim, fiquei
com dois palitos premiados, o que significava o dobro de sorte.
E
eu, que nunca acreditei em sorte, comecei a notar que algumas coisas muito boas
começaram a acontecer. Um dia, comprei uma rifa por uma bagatela e ganhei um
prêmio lindo, que ainda demoraria anos pra poder comprar. Muitas coisas
aconteceram, fui chamada em concursos que havia feito há tempos, passei na
seleção do mestrado, voltei pra capital, conheci Manoel de Barros pessoalmente,
passei a ter tempo para pensar, dizer bobagens.
Mas bem no começo deste ano
aconteceu uma tragédia em minha família. Uma vida interrompeu-se bruscamente.
Todos carregamos um grande ponto de interrogação no meio do peito, que ainda
está com a ferida muito aberta e dolorida. Lembrei que carregava dois palitos
premiados no estojo, ainda. Então peguei os dois e coloquei lado a lado. Olhei
bem pra eles e disse: Qual é, palitos premiados? Por que isso foi acontecer?
Vocês não eram meus parceiros nessa? Por que ele tinha que ir embora?
Enchi os palitos de perguntas,
mas eles não foram capazes de me responder. Pra quem mais eu poderia perguntar?
Olhei para o céu e só vi nuvens brancas. Olhei de novo para os palitos, que era
o que eu tinha de mais certo naquele momento, mas eles não me diziam nada além
de: “vale um picolé de fruta”. E como esse silêncio me incomodou. Olhei para o
lado e vi um livro. Abri e li que temos que viver de soslaio, obliquamente,
para não darmos de cara com a vida. A autora dizia querer verdades inventadas.
Verdades inventadas? Avessei.
Li em um texto de Lacan que fazer
análise é escrever sem caneta. E eu notei que cada vez que contava e recontava
uma história na análise, ela saía diferente. Foram ficando tão diferentes, mas
tão diferentes, que eu já não as reconhecia. Em muitas delas eu fiz mudança de
gênero: da tragédia pra comédia. Algumas tragi-cômicas. Não sou muito dada a
romances. Mas o que fazer diante de uma tragédia tal como a morte de um
familiar? Até então, escrevia sem caneta. Mas o vazio que esta perda me causou
não podia ser suplantado sem tinta, sem papel.
Eu sei que o vazio é necessário e
sem fim. Onde acaba um buraco? Não sou corajosa como Alice para tentar ir até o
final dele em busca do coelho branco. O coelho do tempo. Mas sei que ele – o
vazio – está aí, persiste. Então, algumas histórias podiam ser escritas sem
caneta, mas essa não. Escrevi à tinta. Alguma coisa mudou desde então. As
palavras me envolveram, passaram a coçar minhas orelhas na hora de dormir, a
descalçar minhas sandálias quando chego em casa. As palavras lambem minhas
feridas. Se antes eu as expulsava boca afora para algum lugar entre as quatro
paredes da sala da analista, agora elas voltavam pra mim de um outro jeito.
Pelo dedão do pé.
Ainda bem que eu guardei os
palitos premiados. Não me deram respostas, mas minha revolta com eles fez com
que eu abrisse o livro e aprendesse que é preciso inventar as verdades, mais do
que isso, é preciso escrevê-las.
Isloany Machado, 03 de outubro de
2012.
Triste e lindo ao mesmo tempo...Como eu queria poder, a tinta, falar...LINDO DEMAIS, TRISTE DEMAIS
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