Há alguns
dias estava tendo aula de psicanálise e o professor citou Pessoa: “é preciso ir
ao rabo das coisas”. Imediatamente pensei na minha cadela. July é preta
lustrosa, seu nome completo é July Preta. Sua mãe era da raça labrador e morreu
de diabete. O pai era de uma raça enrugada. July Preta nasceu com cara de
paisagem. Mas por que pensei nela diante da citação do professor? “É preciso ir
ao rabo das coisas”. Todas as noites, July corre atrás do próprio rabo. Até o
dia em que eu ouvi esta frase de Pessoa achava que July, com aquela cara de
paisagem, era uma tola que corria atrás do rabo para chamar nossa atenção, ou
porque não tinha mais o que fazer na sua vida monótona de olhar a rua pelas
frestas do portão. Ela tem mania de bolinha, “nisso ela se parece com todos os
outros cachorros”, dirão os outros donos de cachorros. Mas July Preta
praticamente tem uma bolinha acoplada na boca. Ela pode estar dormindo ou
fazendo qualquer outra coisa, mas sempre que nos vê, imediatamente acopla a
bendita bolinha na boca. Depois dessa aula descobri que o ritual noturno de
July – correr atrás do próprio rabo – é uma busca incansável pelo sentido da
própria vida. E com aquela cara de boba! Pensei também em Safira, a outra
cadela que tivemos e infelizmente já se foi. Quando ganhamos Safira, ela já não
tinha rabo. Mesmo assim corria atrás de si mesma, mas notava nela uma espécie
de expressão melancólica, sabia fazer cara de coitada pra mostrar sua falta, de
rabo. Safira tinha muitos momentos felizes, brincava de bolinha, de lutinha,
mas não podia morder o próprio rabo. Se um dia ela tentou, não o encontrou e
desistiu de procurar, porém carregou esta perda estampada em sua cara de
piedade. July Preta e Safira, quase opostas. Depois de pensar no rabo delas,
pensei nas pessoas. Em seguida pensei na psicanálise para pensar nas pessoas.
Já perdemos o rabo quando entramos no universo da linguagem. Algumas pessoas
carregam, assim como Safira, uma tristeza, um luto pela perda do rabo, mas não
querem mais correr atrás de si em busca de respostas. Outras pessoas são como a
July, incansáveis na busca. Ela tem o rabo e mesmo assim corre atrás dele, pois
sabe que as respostas não estão nele, ou na coisa em si, dito de outro modo.
Algumas pessoas buscam o rabo perdido exclusivamente na religião, outras no
trabalho e outras em outros lugares. Há um tipo de pessoas que, lá no fundo,
sabem que perderam o rabo, daí buscam um analista e lá em seu consultório fazem
o ritual da July: correm atrás de si buscando o sentido. “É preciso ir até o
rabo das coisas”. Eu diria ainda que é preciso ir até o rabo para perceber que
somos todos como Safira. Acrescentaria que há certa ética em ir até o rabo,
mesmo sem encontrá-lo. É preciso entender que buscar sempre, é assumir uma
postura diante do mundo, para questionar as certezas. Assim é o discurso da
histeria: a busca. Citarei Manoel de Barros para falar desse discurso de forma
poética: “Do lugar onde estou já fui embora”. A partir dessa
aula, nunca mais achei que July Preta seja tola. Pelo contrário, sempre que
posso me junto a ela no quintal de casa assim que inicia seu ritual noturno de
corrida incessante atrás do rabo.
Isloany Machado, 30 de maio de 2012.
Puxa... dum rabo de cadela Islo? Do rabo se fez letra, da letra um conto, do conto um sentimento e por fim, um aprendizado. Buscar é coisa de ser humano... e cachorro também.
ResponderExcluirJuly Preta!
Jouli Pret-a,
Jouli prêt
Jouli (c'est) prêt!
(Safira aussi)
July está sempre pronta para buscar o sentido das coisas, das coisas que começam pelo rabo.
Pois é Gi, veja quantas coisas dá pra tirar do rabo...rsrs.
ExcluirFilósofa nata..Tira reflexões dos lugares mais inesperados...Parabéns pela sensibilidade!
ResponderExcluirObrigada querida!
ExcluirUma sugestão...quando vamos publicar um comentário surge aquela sequencia de letras e a mensagem:
ResponderExcluir"Prove que você não é um robô"
COmo se prova isso? O que vc diria?
Heheheheh, acho que é a configuração do blog, mas vou mudar e aí até mesmo um robô poderá postar...beijo
ExcluirE aí, eu adorei a foto da cachorrinha!
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