Desde
pequena sempre me interessei por tudo o que claudica, meus olhos sempre se
voltaram para os avessos humanos. Desta forma foi por este olhar que encaminhei
minhas escolhas em tudo na vida desde muito cedo. Assim foi que outro dia
estava naquela reunião, na verdade uma oficina em que você também estava, e discutíamos
as maneiras pelas quais os defensores de direitos humanos podem se proteger de
ameaças e do risco de morrer pela causa que defendem. Já trabalhei com um órgão
governamental de defesa de direitos, mas nunca me senti em risco e nunca fui
ameaçada, não por causa disso. Além deste trabalho, não atuei diretamente em
causas de pessoas que têm seus direitos violados. Meu trabalho se volta mais
para deixar falar o avesso do ser humano, o que não deixa de ser, creio eu,
também a defesa de uma causa. Pra ser
muito sincera, eu posso dizer que já estudei muitas teorias sobre os direitos
humanos, sobre a história de muitos movimentos sociais, de pessoas que morreram
ou que foram seriamente ameaçadas por defender esta bandeira. Mas ainda assim,
confesso que estudar a teoria é diferente de estar de frente com o que acontece
na prática. Tentarei ser mais clara. Nesta reunião estavam presentes, além de
nós, várias pessoas que trabalham diretamente na defesa de causas humanas pela
liberdade de existir enquanto gênero, raça, credo, etc. Mas o fato é que me
deparei não só com pessoas que defendem o direito que o outro tem, apesar de
elas mesmas não sofrerem violação pessoalmente, como também estive frente a
frente com alguns daqueles que sofrem e, por isso mesmo, defendem as causas de
seu povo. Estou falando especificamente de você enquanto representante dos indígenas
de sua etnia aqui em nosso Estado. Quando se apresentou, disse seu nome
indígena e o significado: Sol. Vou chamá-lo assim. Eu nunca tinha ouvido assim
de perto um apelo por socorro, de alguém ameaçado por defender o que já era seu
antes que o “desenvolvimento” chegasse por aqui. Havia outros também, mas você
especificamente chamou minha atenção. Com seu olhar enviesado, desconfiado, de
quem não sabe de onde virá a próxima ameaça. O nariz cuja ponta tem o formato
de um pequeno triângulo. Sua pele avermelhada, assim como a minha. Os cabelos castanho-escuros
e lisos, quase alcançando os ombros. Notei que os meus têm esse mesmo aspecto.
Os olhos pequenos e rasgados na face, castanho-escuros também, como os meus. Notei
a grande semelhança entre nós. Ouvi calada seu desabafo sobre a vida que leva
por causa das ameaças que sofre por lutar pela dignidade de seu povo, que não
tem lugar nesta nossa sociedade voraz pelo tão aclamado desenvolvimento. Quando
olhava para você e ouvia as suas palavras, lembrava de tudo o que aprendi em
história. “O Brasil foi ‘descoberto’ pelos portugueses que, ao chegarem aqui,
se depararam com os povos nativos, os índios. Estes povos foram dizimados e
hoje temos uma pequena população. Dia 19 de abril é o dia do índio.” Palavras
saídas muitas vezes de forma já automática e sem indignação. “Os indígenas
sofreram um grande processo de aculturação por causa do etnocentrismo.” Lembrei
também de todos os comentários preconceituosos que já ouvi sobre seu povo:
“índio é vagabundo, não gosta de trabalhar”. “Pra que eles querem terra, se
fica lá improdutiva?”. Mas isso é algo que deveríamos ter aprendido ao mesmo
tempo em que aprendemos o português e a matemática: nós é que somos escravos
do dinheiro, vocês não. Somos dependentes do desenvolvimento, na medida em que
cada vez que consumimos mais, mais somos consumidos pelas insatisfações. Índios
não são vagabundos, eles apenas têm outra relação com o trabalho que precisam
realizar para viver, o que é diferente de trabalhar até a exaustão para gerar
lucro para outro. Nosso trabalho é mercadoria que vendemos para poder comprar
outras, cada dia mais caras. O trabalho de seu povo não é mercadoria, pelo
menos não era até acharmos que tínhamos o “direito” de convertê-los para o
nosso modo de viver. Our way of life.
Sol, você falava com os olhos cravados no chão como se devesse se envergonhar
por ser quem é, ou como se não pudesse olhar nos nossos olhos, enquanto que
quem deveria estar com os olhos no chão era eu. Me senti envergonhada diante de
você. Coincidentemente estava lendo por esses dias um livro de Marguerite Duras
chamado “A Dor”, no qual ela conta a história de uma mulher que espera o
retorno, ao fim da guerra, de seu marido que foi levado pelos nazistas em seus
trens da morte. A dor descrita é dilacerante e causada por essa longa espera e
por não saber se a pessoa estava viva ou morta. Senti dor ao lê-lo. Lembrei
disso porque já ouvi dizer que a nação alemã sente vergonha pelo sangue
derramado por lá. Ao ouvir você pedindo socorro, entendi como é sentir esse
tipo de vergonha. Mais do que isso, senti dor também. Somos muito parecidos,
mas você é corajoso, luta de peito aberto. Ao final, abracei-te em despedida e,
por alguns segundos, não havia nenhuma distância entre nós. Fiquei o tempo todo
com um nó na garganta. Nó que desatou quando cheguei em casa e meu marido, ao
perceber algo diferente em meu semblante, perguntou: “Tá tudo bem?”. Explodi em
choro, angustiada e culpada porque não coloquei nunca meu peito aberto para
defender sua causa. Nunca fui ameaçada como você, levo a minha vida e sigo
ignorando as ameaças que recebe, os amigos e familiares que já perdeu, a dor
que sente pela discriminação que sofre. E por quê? Por causa do famigerado
desenvolvimento. Senti náusea. Então meu marido disse que defender a causa
indígena não significa ter que ir lá ficar acampada ou deixar tudo para salvar seu
povo, até porque não sou nenhuma super-heroína a prova de balas ou de
atropelamentos. Decidi então que escreveria esse texto para dizer as coisas entaladas
que eu nunca disse a cada vez que ouvi alguém sendo preconceituoso com os
indígenas. Decidi que, se não consigo falar, posso escrever, pois é a minha
forma de dizer. Decidi que minha voz se juntaria à sua e ao coro dos indígenas
e das outras pessoas que lutam pela vida e dignidade de pessoas como você. Desculpe-me
se isso for pouco, eu sei que é. Sigo ciente de que a escrita salva a minha
vida ao tentar contornar ou aplacar um pouco da dor que sinto diante do que é
inexprimível, inexplicável.
Isloany
Machado
Escrito
em 08/07/2012.
chorei, to com um nó na garganta...
ResponderExcluirPois é Mara, não dá pra não ficar com nó na garganta com uma situação destas...
ExcluirCampo Grande, 12 de julho de 2012
ResponderExcluirOlá Isloany, confesso que não tinha passado, detidamente, por este espaço de costura, se assim posso chamá-lo...e digo, gostei muito!
Acredito que me senti instigada a compartilhar algumas tímidas costuras que ando fazendo em casa ... Adorei a parte em que diz: “Decidi que, se não consigo falar, posso escrever, pois é a minha forma de dizer”. Me reconheci nesta frase, e pensei que chegar/estar em casa e sentir-se liberando em palavras aquilo que te remexe e estremece, por dentro, é o que tenho vivenciado nestes últimos tempos... Lembro de Clarice Lispector dizendo que queria poder pegar com a mão a palavra (1973:11), eu, à minha maneira, acredito que também compartilho um pouco deste desejo; queria poder pega-la, movimentá-la, esticá-la e ver que neste ínterim, estendi um pouco de mim, ali num pequeno texto, num ensaio ou em alguma outra costura. Talvez como forma outra de também dizer. Aliás, foi assim que hoje li/vi seus textos, como (inspiradoras) alternativas de expressão.
Abraço, Hisadora Beatriz.