Bom dia, senhoras e senhores.
Aqui quem vos fala é um piolho, um piolho morto.
Decidi manifestar-me porque aqui do além, onde agora habito, me lembrei que
quando era adolescente li um livro que me impressionou muito, naquela época eu
morava na cabeça de uma menina, Raquel, que amava os livros e eu acompanhava
suas leituras do alto de sua cabeça. Ela não deixava sua mãe me matar porque
adorava quando eu lhe fazia cócegas atrás das orelhas, sarrista que era, sempre
que ficava intrigada dizia: “estou com um piolho atrás da orelha”. Ríamos
muito. Então um dia li junto com ela a história de um tal Brás Cubas, que
escreveu o livro depois de morto e conta sua vida de trás pra frente. Inspirado
nele é que hoje resolvi me lamentar. Pois, sou um piolho morto. Quando Raquel
decidiu entrar na faculdade, achou que não lhe cabia mais carregar um piolho na
cabeça e me pediu gentilmente que fosse embora. Arrumei minhas malas, coloquei
meu chapéu e minhas botas e saí. Ela chorou e eu também. Errando pelas ruas
avistei uma menina de uns nove anos. Apaixonei-me por seus cabelos, que eram
muito parecidos com os de Raquel, crespos e volumosos. Ah, como eu adorava me
perder naquele vai-e-vem de seus fios. Fazia de escorregador alguma mecha
displicente que caía em sua testa. Raquel se sabia amada com a minha presença.
Decidi que habitaria aquela nova cabeçorra linda cuja dona se chamava Lisa. Com
o passar dos dias, notei que a menina não era alegre como Raquel. Todas as
manhãs, antes de ir pra escola, sua mãe nos emplastrava, a mim e aos cabelos de
Lisa com um creme enjoadamente cheiroso e fazia duas pitucas no alto da cabeça,
uma de cada lado. Lisa gritava “ai!”, mas sua mãe ignorava e dava uns
solavancos dizendo que parasse quieta. Eu ia pra escola sufocado e bem esticado
no meio dos fios que cercavam meu corpo e não me deixavam mover sequer as mãos.
Eu não podia acompanhar as lições de Lisa. Quando chegava em casa, ela soltava
as amarras e brincávamos a tarde toda, daí sim podia ler alguma coisa, nas frases
de para-choque de caminhão que suas amigas postavam no facebook. Lembro-me de
uma assim: “Dias melhores virão, chamam-se sábados, domingos e feriados”; e
outra assim: “Gata, eu não sou coxinha de rodoviária, mas só tenho óleos pra
você.” Ficava impressionado com a capacidade de síntese da sociedade
ultramoderna. Na época de Raquel a gente passava as tardes lendo Machado,
Alencar, Lispector, enfim, c’est la vie[1].
Um dia a mãe de Lisa ficou muito irritada ao arrumar seus cabelos e esbravejou:
“sábado vamos dar um jeito nisso!” Cutuquei Lisa e disse a ela: “ufa, até que
enfim sua mãe se deu conta de que é melhor deixar a gente em paz!”. Mas sábado
foi o dia fatídico. O dia de minha morte. Estão pensando que a malvada mãe de
Lisa me matou à unha? Nada disso. Ela levou a filha em um salão de beleza:
“quero que você faça um alisamento nela”. Eu não entendi nada, Lisa pôs-se a
chorar. Enquanto lavavam a cabeleira, eu me agarrava como de costume aos fios,
mas depois da lavagem, uma mulher de cabelo vermelho-fogo, com uma parte da
raiz preta, veio com um enorme pincel e besuntou os cabelos de Lisa. O produto
não era o mesmo que sua mãe usava, o creme enjoado de tão cheiroso, era algo
que fedia a esgoto, terrível! Fui ficando meio zonzo, mas resisti bravamente, afinal,
não queria desertar daquela cabeça à que me apegara já tanto. Os piolhos também
amam. Sem que eu pudesse me recuperar perfeitamente do produto, a mulher veio
com um aparelho que parecia uma prancha, ouvi quando disse à sua assistente:
“ligue a chapinha na tomada”. Separou uma mecha de cabelo e pranchou, vi fumaça
saindo! Pensei em fugir, mas antes que houvesse tempo de avisar Lisa, a mecha
de cabelo em que eu estava foi tomada pelas mãozinhas balofas da mulher. Fui
então assado entre as duas chapas metálicas. Assim se deu minha morte. À época
de meus pais, os piolhos morriam por causa de um produto com o qual lavavam a
cabeça das crianças. Na de meus avós, socavam álcool nas cabeças piolhentas.
Nunca imaginei que meu fim seria desta forma: literalmente chapado. Morri muito
jovem e lamento por isso. Agora Lisa está com os cabelos lisos, tão lisos que
nem os tic-tacs agarram os fios, acabou-se o trabalho de sua mãe, que agora
economiza o tempo de ajeitar os cabelos e gasta postando frases filosóficas no facebook.
A última que me lembro de ter lido em seu mural era assim: “Gente que faz você
ficar com pulgas atrás da orelha? Enfia minhocas na sua cabeça? Cria grilos e
te fala cobras e lagartos? Minha filha, isso não é gente não, é uma praga!
DEDETIZA!”.
Isloany Machado
Campo Grande, 01 de junho de 2012.
"Os piolhos também amam", kkkkk
ResponderExcluirTempos modernos: de Machado ao facebook. Muito bom!!!
;)
ResponderExcluirMuito bom Isloany! adorei seu Blog!
ResponderExcluirObrigada Vanessa!!!
Excluirkkkkkkkkkkkk, ADOREI!!
ResponderExcluirSabe Islo, quero lhe contar uma coisa. Quase todos os dias quando acordo pela manhã, tenho o hábito de olhar meus e-mail e agora depois deste blog MARAVILHOSO. Seus textos fazem parte da minha rotina e é como algo que faço que dá prazer, que é interessante sempre e o melhor de tudo é engraçado. Não sei o que aconteceu contigo nos ultimos tempos, mas esta encantadamente inspirada. Parabéns!! E que continue nos presentiando com seus textos dia a dia. Eu já espero o próximo, rs. Grande abraço querida.
Dani, você não sabe como fico feliz em saber disso, que essa leitura faz parte de seu dia-a-dia, que esteja gostando de ler os textos. Saber do apoio de meus amigos é muito mais inspirador do que qualquer outra coisa. Na verdade eu também não sei o que aconteceu comigo ultimamente...rsrs, mas ando com verborragia. Queria ter tempo para escrever todos os dias, já que não tenho, posto toda quarta-feira, pelo menos por enquanto...depois não sei como será. Muito obrigada mesmo por suas palavras. Um abraço!!
ResponderExcluirTrès bien écrite! :D
ResponderExcluirMerci Arthur!!!
ExcluirMuito legal, ilustrado daria um belo livro infantil com um toque muito especial sobre leitura.
ResponderExcluirVocê escreve muito bem!
Valeu Soraia!!! =D
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