Aquela mulher de
pele parda, cabelos e olhos escuros, dialogava com a outra, de pele branca, mas
encardida, o cabelo amarelado imitando o estilo das ladies. A parda tinha uma
pintura forte na face como a de quem vai pra guerra. Nos olhos havia um largo
risco preto que passava do limite do olhar. Na boca, um rosa vivo que
ultrapassava os lábios e alcançava os dentes, amarelos. Ela contava pra amiga
sobre uma grande decepção amorosa na qual sofrera agressões físicas. A amiga se
identificava, soltava exclamações e ditos de indignação. Tinha arranjado um
outro namorado, mas disse isso sem muito entusiasmo, fato estampado na falta de
brilho das palavras. Foi então que se explicou: “é que na verdade dizem que a
gente só ama, AMA mesmo, uma vez na vida”. Então por que se pintara como se
estivesse indo pra guerra? Fiquei a pensar na sentença que saíra tão descrente
de sua boca: “Só se ama uma vez na vida”. Avessei a frase e comecei a pensar.
Freud dizia que nosso grande e inesquecível amor era por aquela pessoa que nos
deu os primeiros cuidados: nossa mãe ou a pessoa que tenha feito esse papel.
Ela nos olhou primeiro, nos tocou, nos alimentou. Então só tínhamos olhos pra
ela e claro que queríamos o mesmo de sua parte: que só tivesse olhos para nós.
Mas não é assim que a coisa funciona, via de regra. Há algo que ela deseja além
de nós, há outros amores em sua vida. Somos barrados neste amor irrealizável,
portanto. Freud disse ainda que os meninos dissolviam esse amor pra sempre e
esqueciam o fato de os olhos dela se voltarem para outra direção, mas as
meninas carregavam esse amor frustrado com um amargor na boca. Mas é este amor
frustrado que nos permite também desejar outras coisas, essa barra nos ensina
que é preciso catar os cacos e seguir adiante. Sempre com a presença da
ausência deste objeto amoroso, que perdemos. Há mulheres que se exasperam com a
possibilidade de que seu homem olhe para o lado, têm ciúmes até mesmo de uma
atriz de televisão. Há homens que não suportam que seu objeto de amor tenha
vida própria. Esperneiam, batem, ferem, matam, por amor. Mas se é fato que
nesta vida só se ama uma vez, todos os outros amores carregarão a cicatriz
daquela primeira desilusão. Passaremos a vida a buscar um substituto, mas
nenhum chegará aos pés daquele primeiro, genuíno. Mas o que foi mesmo esse
primeiro amor? Foi a necessária marca para nos lembrarmos de que somos seres
faltantes, barrados, castrados, a manquejar vida afora. O amor é o significante
que vem suprir essa desilusão humana. Busquemos o amor, sempre e sempre, ainda
que saibamos de seus desencontros. Esse amor não é necessariamente por pessoas,
pode ser por muitas outras coisas. Mas amar, ainda que impreciso, é preciso, para citar o poeta.
Ainda que nessa vida só tenhamos amado, AMADO mesmo, uma vez, foi a
impossibilidade desse primeiro amor que nos fez desejar outras coisas, nos fez
buscar sempre. Fiquei com vontade de dizer para a moça com face pintada que não
desistisse de procurar, que a pintura de seus olhos e boca não era vã. Queria
dizer que se ela manca de um lado e encontrasse alguém que manca do outro,
estaria com o caminhar quase completo. Mas quase, porque ninguém é todo, mesmo
quando se está a dois. No fim das contas ela estava certa de manter a sua
pintura de guerra, pois no amor somos como soldados feridos, sangrantes: só
conseguimos sobreviver quando nos abraçamos e caminhamos juntos no retorno do
front.
Isloany
Machado.
Campo
Grande, 20 de maio de 2012.