Outro
dia entrei numa banca de revistas e olhava despretensiosamente os livros postos
sobre uma bancada, quando vi “A bolsa amarela”, de Lygia Bojunga. É um livro
que me lembro de ter lido na infância. Nem pensei duas vezes e comprei. Reli. Conta
a história de Raquel, a filha caçula de uma família que já tinha três filhos
com mais de 10 anos quando ela nasceu. Então ela diz “já nasci sobrando” porque
ouviu diversas vezes seus irmãos dizerem que ela nasceu fora de hora, quando a
mãe já não tinha condições de ter filhos. Desse não-lugar, Raquel, que tem uma
vontade “gorda” de escrever, precisa recontar sua história, reescrevê-la. O
livro faz uma bela crítica às relações familiares, e algumas outras tantas, mas
o que quero destacar é um aspecto para falar sobre o amor.
Raquel
gostava de escrever e um dia inventou a história de um galo cuja ocupação era
cuidar de um galinheiro. Mas ele se cansa de tomar conta das galinhas, pois
achava que era muita galinha pra um galo só, e resolve fugir. O galo foge da
história de Raquel e vai morar dentro da bolsa amarela, onde ela guardava suas
vontades. Ele estava resolvido a lutar por suas ideias. Em sua vida de galo,
não tivera muita escolha, pois desde cedo lhe disseram: “Daqui pra frente você
vai ser um tomador-de-conta-de-galinha como o seu pai era, como o seu avô era,
como o seu bisavô era, como o seu tataravô era.” A esse sujeito não restava
muita escolha na trama familiar, mas, se considerarmos que, “por nossa posição
de sujeito, sempre somos responsáveis”, como disse o psicanalista Lacan, podemos
dizer que sempre há uma escolha, e Afonso, o galo, decidiu fugir do lugar
reservado a ele na linhagem de galos tomadores-de-conta-de-galinha de sua
família. Trata-se de um ato de coragem, mas Afonso ainda precisava encontrar
uma grande ideia pela qual lutar. Quando questionado por Raquel sobre suas
ideias, ele diz: “ainda não deu pra ter nenhuma, primeiro eu preciso ter a
ideia. Depois eu saio lutando”. Enquanto isso, ele ficava escondido dentro da
bolsa amarela e saía para dar uma voltinha de vez em quando para ver se
encontrava uma ideia.
Certo
dia, em uma de suas buscas, Afonso não acha uma ideia, mas encontra um
guarda-chuva e leva para presentear Raquel. Logo descobrem que era uma
guarda-chuva que estava toda enguiçada, com as costelas quebradas e cuja
história também enguiçara junto com um estalo que tivera. A Guarda-Chuva fala
uma língua que só o galo consegue entender e isso o coloca em um lugar bem
importante pra ela. Surge um clima de romance entre Afonso e a Guarda-Chuva,
que passam a conviver dentro da mesma bolsa: “Ela logo espichou o pescoço para
ficar olhando o Afonso. Ele virou a cabeça, olhou para ela e...não sei
não...mas o jeito que eles se olharam foi um jeito assim...sei lá...um jeito
que um dia vai dar casamento”.
O
tempo passa e Afonso finalmente encontra a tão procurada ideia depois de
reencontrar um primo que era da linhagem “galo-de-briga”. Esse primo não gostava
de brigar, mas os donos haviam costurado seu pensamento com linha forte e só
deixaram pra fora a parte que dizia que tinha de brigar e ganhar. Depois disso,
Afonso define a ideia pela qual vai lutar: “Vou sair pelo mundo lutando para
não deixarem costurar o pensamento de ninguém. Só tem um problema: o mundo é
grande demais, se eu saio lutando a pé vou ficar muito cansado”. Assim Raquel
descobre que Afonso não sabe voar quando ele conta a história de seu medo:
“Então
ele me contou que toda a vida teve mania de voar alto. Mas nunca experimentou
porque tinha um medo danado de cair. Até que um dia tomou coragem. Quando já ia
chegando, perdeu a força e começou a cair. – Fiquei apavorado, sabe Raquel? Daí
pra frente toda semana eu resolvo: segunda-feira bem cedo vou experimentar
outra vez. Mas na hora eu não tenho coragem e deixo pra outra segunda-feira.” Afonso abriu mão de seu gosto por
voar depois que perdeu as forças e assim, sempre posterga o reencontro ou a
realização de seu desejo. Trata-se de uma procrastinação desse encontro. Afonso
não consegue se reencontrar com seu desejo de voar, tendo que procrastinar esse
momento para a próxima segunda-feira.
Retornemos à Guarda-Chuva. Raquel
decide levá-la para consertar e, depois disso, podemos saber o restante de sua
história. Ela tinha sido feita bem bonitinha, mas sentia-se incomodada, ela não
queria ser só isso. Raquel pergunta a Afonso: “Ela não gostava de ser
bonitinha?”, ao que ele responde: “Gostava. Mas ela achava que ser bonitinha só
era muito pouco: se de repente ela desbotasse, ela deixava de ser bonitinha; aí
ela não ia servir pra mais nada, porque a única coisa que ela era, ela deixava
de ser.” A Guarda-Chuva tinha uma questão do feminino, ela queria ser mais do
que um belo objeto de apreciação, pois se fosse apenas isso, poderia um dia
deixar de sê-lo. Ela queria mais, queria ser importante, ocupar outro lugar. Ao
contrário de Afonso, a Guarda-Chuva era bem corajosa e até apressada demais. Ela
havia se quebrado toda porque sentiu vontade de voar que nem paraquedas e um
dia, depois que já tinha enguiçado nessa de abrir, fechar e voar, ela resolveu
pular de novo. Pula sem saber se vai conseguir abrir ou não e corre um grande
risco. Mas, como diz Afonso, o risco foi tão grande quanto a “chateação de
viver sempre ali parada só sendo bonitinha e mais nada.” A Guarda-Chuva não
tinha medo, ela preferiu se arriscar em seu desejo do que viver ali respondendo
ao que fora determinado para ela: ser bonitinha. O preço que pagou por bancar
seu desejo foi algumas costelas quebradas a mais.
Temos uma oposição entre a postura
de Afonso, que procrastina o encontro com o seu desejo, e a da Guarda-Chuva,
que se precipita literalmente, se jogando para realizá-lo. O clima de romance
estava no ar desde que se conheceram e com isso, Afonso se apaixona por ela de
uma vez por todas: “não é à toa que eu gosto da Guarda-Chuva: ela tem ideias.
Sabe o que é que ela me disse? Que eu não preciso mais ter medo de voar alto.
Ela vai junto comigo, e, se eu caio, ela dá uma de paraquedas; e, se eu caio de
novo, ela dá outra; e assim toda a vida.” Afonso não precisa mais procurar
ideias, pois a Guarda-Chuva as têm de sobra. Além disso, ali onde as asas dele
fraquejassem, ela poderia sustentá-lo. Ele diz: “Agora sim, posso sair pelo
mundo, voando bem alto sem perigo de me esborrachar. Agora sim posso lutar pela
minha ideia.” Ele pode agora realizar sua vontade de voar alto e lutar por suas
ideias. Por outro lado, ela encontra um lugar no desejo dele e não precisará
mais ser somente a bonitinha, poderá também realizar o seu outro desejo: voar. Estabelecem
uma bela parceria.
Creio que esta seja uma bela
metáfora do amor. As pessoas passam muito tempo querendo entender o amor,
defini-lo, alcançá-lo, teorizar sobre ele dizendo que se trata de combinações
hormonais. Outros ainda esperam o dia em que encontrarão o príncipe encantado e
mascarado ou a princesa, bem bonitinha. Lacan afirma que A mulher não existe. A Guarda-Chuva não é
A mulher, já que esta não existe, mas ela é uma mulher que “consoa” muito bem
com o inconsciente de Afonso. Era justamente ela que lhe fazia falta. Não há
nada que nos ensine, no amor, a como devemos agir e, segundo a psicanalista
Carmem Gallano, “não há nada que diga como ser um homem para uma mulher
ou ser uma mulher para um homem.” O que há no amor são parcerias e, Gallano diz
algo muito belo: “a relação amorosa é a relação entre dois exilados.” Afonso e
a Guarda-Chuva são, portanto, dois exilados, que se refugiaram dentro da bolsa
amarela até poderem se unir numa relação amorosa. Lacan afirma que a mulher é o
sintoma de um homem, nesse sentido, se Afonso não podia voar, mesmo tendo asas,
era exatamente ali que ela se enodaria no sintoma dele, dando-lhe asas. Então,
podemos dizer que amar, nesta metáfora de Lygia Bojunga, é estabelecer uma
parceria, é voar a dois. Não se trata de fazer um, mas dois. Amar é dar asas
mesmo quando não se tem. Amar é juntar duas vontades que continuarão sendo
duas, mas em ligação, ainda que sintomática.
Bibliografia
BOJUNGA,
Lygia. A bolsa amarela. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2010.
GALLANO,
Carmem. A alteridade feminina. Campo Grande: Andréa Carla Deuner Brunetto ed.,
2011.
LACAN, Jacques. O
desejo e sua interpretação. Seminário não publicado, 1959.
LACAN,
Jacques. Conferência de Genebra sobre o sintoma, 4 de
outubro de 1975.
LACAN,
Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Este texto ficou ótimo, adorei!
ResponderExcluirValeu Fran!!!
ResponderExcluirLindo Islo! Amei!
ResponderExcluirObrigada Jú!!
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