NESTE DIA DO ESCRITOR, gostaria de falar um pouco sobre este livro da Isabel Allende que me fisgou completamente. A casa dos espíritos é classificado como Realismo Fantástico. Fui pesquisar mais a fundo e ele pertence, junto com Cem anos de Solidão, ao gênero conhecido como Realismo ‘Maravilhoso’. Esta categoria surgiu, pelo que entendi, na literatura latino-americana e seus expoentes são encontrados mais especificamente em países de língua espanhola. A expressão ‘maravilha’ era utilizada pelos espanhóis quando descreviam os territórios do Novo Mundo a ser colonizado (o que nos faz deduzir a ironia). Saga não muito diferente da história aqui em terras brasileiras e, justamente por isso, ao ler A casa dos espíritos, cujo enredo se passa em um país indefinido da América Latina, sabemos que o livro poderia ser sobre qualquer um de nossos irmãos-explorados. É a nossa famigerada história de tantas explorações, latifúndios, misérias, escravidão disfarçada de servidão.
O livro traz o novelo familiar que enreda os Del Valle, os Trueba e os García. Por se tratar do mesmo gênero literário de Cem Anos de Solidão, é perceptível a semelhança, mas aqui o centro se desloca para as mulheres: Nívea, Clara, Blanca e Alba (além de outras figuras femininas igualmente importantes). Apesar dos nomes pertencerem ao mesmo campo semântico, não se trata de uma repetição como gostam os homens, “nomes repetidos dão muito trabalho para anotar no livro da vida”, diz Clara em seu diário (toma Gabo!). O grande patriarca é Esteban Trueba, latifundiário irado, de direita, abusador das camponesas, cão que mais ladra do que morde para defender sua virilidade. Esteban, no fim das contas, é um cachorro sem dono, que mendiga o amor das mulheres, sobretudo da esposa: Clara. Num ataque de fúria, dá nela um soco que lhe arranca os dentes. Ela jamais lhe dirige a palavra até o fim da vida.
Como pano de fundo a história das desigualdades de um país que viu nascer o grande Poeta (Neruda). A autora não dá nome, mas sabemos que é do Chile que se trata. E a história caminha para nos contar sobre a ascensão de Pinochet ao poder. O golpe e a ditadura militar. É a mesma história de tantos de nossos países latino-americanos. É o mesmo enredo do golpe militar no Brasil.
Com a passagem dos anos, a velhice e as perdas sofridas por Esteban, o ódio arrefecido em um corpo que vai diminuindo a olhos vistos, trata-se de um livro sobre a possibilidade de redenção. Eu, que nem tenho como gênero preferido o Realismo ‘Maravilhoso’ (agora especificado), entendi que diante de tantas dores compartilhadas por nossos países vizinhos, só mesmo um pouco da perda de contato com a realidade nos faz capazes de continuar vivos e resistentes. Um livro publicado em 1982, parece que fala do que estamos vivendo agora mesmo. Só leiam.
Aqui você encontrará textos sobre psicanálise, literatura e meus escritos literários.
domingo, 25 de julho de 2021
Resenha d'A casa dos espíritos (Isabel Allende)
sábado, 8 de agosto de 2020
Depois de um tempo
uma análise nos revira do avesso, e tudo o que antes queríamos esconder, se torna o jardim de nossas mais belas verdades.
Depois de um tempo de análise, a falta já não dói, porque você descobre que ela é feita de matéria intransitiva.
E depois de um tempo, todos os seus abismos continuam sendo abismos, mas o que antes parecia pertencer a um território estrangeiro, se reveste da língua materna, porque uma análise nos traduz de nós pra nós mesmos.
E todos os objetos caem por terra, um a um, por serem substitutos daquele primeiro, porque ele, o primeiro, é aquele que não é: sem substância, sem substituto, sem existência, pura presentificação da ausência.
Depois de um tempo, a solidão não é mais assustadora, porque mesmo sabendo ser uma fração, você ainda é um número inteiro. A matemática é outra.
Depois de um tempo você percebe que a dor do outro é do outro, que não diz respeito a você, assim fica mais fácil oferecer o bálsamo que é deixar falar. E falar é, a um só tempo, derrubar as paredes, conviver com os escombros por um longo tempo, e construir outra coisa, que é ainda a mesma coisa, só que diferente. O cimento é outro.
Com o tempo, você faz o luto de tudo aquilo que cai, mas o que antes era dor de morte, se torna celebração de vida. Porque o amor não morre, mesmo quando parece morrer. Ele atravessa o tempo e pode ficar encapsulado esperando a estação certa para germinar. O que morre é o invólucro, aquilo que precisa morrer para que haja a explosão da vida em sua existência mais bruta. E quando você cai em si, tem flor por todo lado, e dentro, e fora, porque não há mais dentro ou fora.
Depois de um tempo, as dores ainda doem, porque são dores, afinal, e só o que elas sabem fazer é doer, mas como tudo, nada é para sempre, e você se permite sentir, sem amortecedores.
Depois de um tempo, por mais que no início você quisesse se fazer outro, como se fosse possível abandonar a si mesmo, você chega ao seu início, momento princeps, numa arqueologia que te leva às suas pinturas rupestres, marcas iniciais, traço que te diz quem você é sem que precise emitir sequer uma palavra. Um traço que sempre esteve ali, mas só foi possível de frente para trás, depois de voltas e voltas, e voltas.
Numa análise a gente vai e volta, não só com as palavras, mas com o corpo, porque corpo também é palavra. Um corpo nunca é só um corpo, mesmo quando acaba, porque se tem uma coisa que não acaba é palavra. O que não quer dizer que não acabe nunca. Acaba. Palavra é infinita. Análise é finita. O inconsciente é um mundo. A castração, muro. E contornamos mais um pouco, e um pouco mais, ainda, sem saber o que está por vir, porque só agora a gente tem a coragem necessária para olhar de frente para adiante. Ainda que haja coragem do início ao fim, posto que nossos horrores provocam nauseangústias, há uma coragem de fim, porque agora tudo está reduzido ao mínimo. Não há bagagem depois que atravessamos a linha de chegada. Apenas com o essencial em mãos, entendemos que a linha de chegada é outro início, partimos do mesmo lugar, mas o destino é outro, novo porque desconhecido.
Só depois de um tempo de análise é que nos permitimos o novo.
Obs.1: perdoem a hora, perdi o sono, porque mesmo depois de um tempo de análise, nada garante uma noite tranquila.
segunda-feira, 11 de maio de 2020
SOBRE A ANÁLISE, A CASTRAÇÃO E A PANDEMIA.
OS QUE NOS DENOMINAMOS PSICANALISTAS
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem" (IDEM). Sobre aqueles que enfrentam a morte autoinfligida, Freud cita Grabbe para dizer que “não pularemos para fora deste mundo”, não porque acreditamos em uma outra vida, ou outro plano como quer prometer a religião, mas porque há uma beleza que é própria da caminhada. Como encontrar alguma satisfação diante de tanto sofrimento? Nas "dicas de como enfrentar uma pandemia” pregada por pessoas E profissionais que nunca passaram por uma? Obviamente que não, pois o que vale para um não vale para nenhum outro. Talvez a beleza esteja naquilo que poderemos contar, se não morrermos de covid, claro. O passado como o conhecíamos continua a existir, já que está em nós, em nossas histórias. O passado é presente, se lembrarmos do que Freud coloca como fundamento do inconsciente: não há distinção temporal aí. Quanto ao futuro? Podemos fazer projeções de como será o mundo pós pandemia? Não acredito, porque ainda não estamos no momento de concluir nada, por ora somos obrigados ao instante de ver, que se demora mais do que gostaríamos.
sábado, 16 de novembro de 2019
Sobre o Coringa, ainda e mais
Referência:
GAARDER, J. O dia do Curinga. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
terça-feira, 5 de novembro de 2019
Resenha do filme Coringa
sabem que não está entre minhas preferências os de super-heróis. Primeiro por sempre ser algo muito surreal, segundo, e por isso mesmo, meu raciocínio não conseguir acompanhar todo o enredo, terceiro porque, não acompanhando, minha memória não funciona para que eu possa assistir as continuações. Pois bem, já assisti vários do Batman e sabia da existência do Coringa, mas então hoje fui ao cinema pela segunda vez assistir sobre sua história (eu nunca fui ao cinema duas vezes para ver o mesmo filme).
Logo no começo, primeira cena, Arthur Fleck está se pintando de palhaço, um sorriso forjado com os dedos e uma lágrima descendo pelo rosto. Não se trata daquela famosa lágrima desenhada, é uma real, que desce discretamente. Ele trabalha para uma empresa que “fornece" palhaços para eventos em geral. São tempos de violência gratuita, da banalidade do mal (salve Hannah Arendt), e Arthur é espancado por um grupo de meninos na rua. O motivo: porque querem lhe roubar a placa(?); porque só querem sacaneá-lo mesmo(?); sabe-se lá o que explica o prazer em causar dano gratuitamente ao outro. Ele leva uma bronca do patrão porque o cliente se queixou de seu sumiço, ao passo que ganha uma 38 do colega de trabalho.
Corta para a conversa com a assistente social que o "atende", e a pergunta de Arthur é: "É impressão minha ou o mundo está ficando mais maluco?”.
Arthur veio ao mundo sob a seguinte sentença: "aquele que nasceu para fazer rir e trazer alegria”. Sua mãe o chama de "Feliz”. O local onde trabalha se chama Haha’s e seu slogan é "coloque um sorriso nessa cara”. Há um imperativo à felicidade, à alegria, ao riso indispensável, a que Arthur obedece, tanto se tornando palhaço, como sonhando em ser comediante, mas, sobretudo, colocando o imperativo no real com seus ataques de riso a que ele chama de distúrbio neurológico. E todos perguntam, quando acontece: “do que você está rindo, idiota? Não tem graça". São tentativas de cumprir o destino do dizer da mãe, agora uma senhora que é cuidada (alimentação, banho, etc) por Arthur, desde cedo “o homem da casa”. Ambos vivem uma loucura a dois, para ficar mais chique, folie à deux. A mãe vive repetidamente questionando por que Thomas Wayne não responde suas cartas. Ele, um homem importante, quer se candidatar a prefeito (sim! o pai do Batman!), ela, uma mulher que trabalhou na casa dos Wayne há trinta anos.
Vamos para o segundo momento em que Arthur está de novo como um objeto a ser batido, espancado, gratuitamente. Ele acaba de ser demitido porque a arma cai de sua perna no meio de uma apresentação num hospital infantil. "É um adereço, faz parte do show", mas seu chefe não acredita e o demite aos berros, por telefone. No metrô, três babacas, os típicos cidadãos de bem de Gotham (nada que lembre nossos cidadãos de bem por aqui) estão assediando uma moça e Arthur começa a gargalhar. Não tem graça, nunca tem. Os três homens começam a espancá-lo e ele reage matando os três a tiros. É difícil admitir isso, mas a gente torce e sente um alívio quando ele consegue se levantar do espancamento brutal e mata os três. Talvez isso seja material para a polêmica em torno do filme, de que incitaria à violência. Mas me parece que a arte imita a vida mais do que o contrário, e se sentimos um certo gozo na cena, é porque podemos fantasiar ao invés de ir ao ato (salve a arte!). Depois disso, ele corre, aturdido e entra num banheiro público. Lá se desenrola uma dança que parece quase involuntária, quase tanto quanto seu riso. Uma cena que me fez arrepiar inteira e eu queria abraçar aquele ator por ter escolhido ser ator e fazer aquilo tão bem. O assassinato no metrô causa rebuliço em Gotham e o candidato a prefeito e empresário Wayne (o entojado) diz: “o problema dessas pessoas que fazem esse tipo de coisa é que não suportam as pessoas bem-sucedidas como nós, já que eles continuam sendo meros palhaços”. Arthur ouve esta fala que está sendo transmitida na televisão. Wayne é chamado a dizer algo, pois os três rapazes eram funcionários de sua empresa.
Em seu caderninho de piadas para o show de stand-up comedy que está preparando, escreve: "A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não tivesse uma”. Na conversa com a assistente social, ela sempre lhe faz as mesmas perguntas e ele diz: “Você não escuta o que eu digo. Sempre pergunta como eu me sinto, se tenho pensamentos ruins. Eu sempre tenho pensamentos ruins. Sempre me senti como se não existisse. Você não me ouve". E parece que não ouve mesmo. Ao fim deste encontro, ela lhe dá a notícia de que a verba do programa de saúde foi cortado e, portanto, é o último atendimento. “E como vou conseguir meus remédios?". A pergunta cai no vazio.
A mãe de Arthur pede a ele que poste mais uma carta para Wayne. Ele decide abrir a maldita carta para saber o que tanto esta mulher tem a dizer. Ela pede ajuda: “somente você pode ajudar a mim e a seu filho". Estarrecido, aos berros, Arthur quer saber se aquilo é verdade. A mãe diz que na juventude, quando ela trabalhava na casa dele, se apaixonaram, mas ele achou melhor não ficarem juntos por questões sociais e que a fez assinar uns papéis. E nós ficamos sem saber se é delírio (eu ia dizer “se é verdade ou delírio”, mas um delírio não é uma verdade?). Pois Arthur vai até Wayne, que nega a paternidade e ainda diz que sua mãe é uma louca, que o adotou quando ainda trabalhava para sua família, mas que foi internada num sanatório depois. Decidido a saber de sua verdade (tanto quanto o pobre Édipo que acaba vendo justo aquilo que mais temia enxergar), vai ao sanatório e descobre que sua mãe foi diagnosticada como psicótica, que tinha um filho adotivo (ele) a quem deixava sofrer maus tratos por parte de seus namorados. Nessa cena, tudo acontece muito rápido e as questões que ficam são: a mulher era realmente louca? Ela adotou mesmo o menino ou foi obrigada a assinar papéis falsos segundo a versão da poderosa família Wayne? Se acaso não era louca, ela ficou a partir dali, a ponto de permitir que seu filho sofresse abusos físicos: “Eu nunca o ouvi chorar, ele sempre foi um garotinho tão feliz".
Ser feliz é o imperativo do Outro materno a quem Arthur está absolutamente alienado, sem corte, sem castração, foracluído. Uma psicose não tem como causa as mazelas sociais, ainda que a maneira como a loucura é tratada (ainda) seja um grave problema social, sim. Estando fora do discurso, Arthur se coloca fora da lei e, para romper com o imperativo da mãe, precisa matá-la no real. Enquanto um “neurotiquinho" qualquer passaria anos em análise, deitado no divã, matando o Outro aos poucos, Arthur faz uma passagem ao ato e diz, enquanto a sufoca com o travesseiro: “É muito difícil tentar ser feliz o tempo inteiro. Eu nunca fui feliz nesta minha vida desgraçada. Lembra quando você dizia que meu riso era um distúrbio? Eu descobri que não é, eu sou assim mesmo". Édipo mata o pai sem saber que é seu pai. Arthur mata a mãe porque sabe (o saber psicótico é intransitivo).
Para saber o desfecho (mais do que já abri meu bocão) vocês precisarão ir ao cinema, até porque minhas palavras não conseguem transmitir o impacto que o filme causa. Não relatam sobre a atuação do Joaquin Phoenix (CASA COMIGO, JOAQUIN??). Tenho para mim que ele ganhará o Oscar de melhor ator.
Obs. 1: Alguém quer ir comigo ao cinema pela terceira vez?
Obs. 2: Eu pago a pipoca.
domingo, 25 de novembro de 2018
Religião se discute?
Religião não se discute. (Tomo aqui a posição de Lacan no texto O triunfo da Religião, ao afirmar que “há uma verdadeira religião, é a religião cristã"). Este é um preceito básico caso alguém opte por seguir uma religião: não discutir, não questionar, porque é algo que se sustenta em dogmas, em certezas, apesar do rol das incertezas humanas. E por falar em incertezas humanas, como elas são insuportáveis, não? Para onde nós, pequenos seres limitados, podemos direcionar as perguntas sobre o que é a vida, de onde viemos e para onde vamos? Onde enfiar toda a nossa construção narcísica, necessária para que constituíssemos nosso eu, depois que descobrimos que um dia vamos todos morrer? A ideia da morte é insuportável, a noção de que temos um tempo determinado para viver, pois somos finitos, é angustiante (mais para uns que para outros, basta algum tempo de escuta clínica para sabermos disso).
A religião é algo que dá respostas, que apazigua os questionamentos e traz esperanças sobre um outro lugar, uma continuidade. Aos 16 anos, quando comecei a descobrir isso, me tornei uma pessoa cética e até mesmo debochada em algumas ocasiões, pois carregava aquela arrogância típica dos adolescentes que acham ter feito uma grande descoberta. Hoje, depois da psicanálise, eu acho (mesmo) que a religião é absolutamente necessária para algumas pessoas, justamente aquelas que não suportariam o desamparo que é saber da castração, da finitude, e todas as coisas que nos colocam numa posição de objeto dejeto: só humanos e nothing more (como diria o corvo de Poe). Existe algo mais angustiante do que isso?
Pois bem, a religião traz respostas, dá sentido. Lacan dirá que "ela encontrará correspondência de tudo com tudo”, sendo esta, inclusive, sua principal função. Por isso acredita que triunfará, por ser inquebrantável, por serem "capazes de dar um sentido realmente a qualquer coisa, um sentido à vida humana, por exemplo". A religião secreta sentidos o tempo todo e, para segui-la, não faz sentido questionar, mas, sim, tomar as respostas como verdades e acalmar o coração. Por isso, Lacan diz ser “impossível imaginar quão poderosa ela é”. Talvez não tão impossível para nós que acabamos de eleger um líder político cujo discurso se baseava na limpeza da corrupção, na palavra do Deus justiceiro (o do velho testamento).
Bolsonaro é, segundo ele mesmo acredita, o próprio Messias (está no seu nome). E seus seguidores acreditam no poder dessa "limpeza”. Pelo que me lembro, há pelo menos duas passagens bíblicas em que a humanidade é reiniciada pelos bons: 1. No dilúvio (em que todos morrem exceto a família de Noé), e 2. A destruição de Sodoma e Gomorra (desta eu não me lembro exatamente como acontece, mas soube recentemente por uma colega psicanalista, que tem um lance das filhas se deitarem com o pai para dar continuidade à humanidade – tá lá gente, o incesto é bíblico). Quando o mundo está muito cheio de liberdades, muito adepto às diversas formas de gozar, o chamado do pai ordenador é necessário. Num contexto de tamanha instabilidade em diversos níveis, as vozes clamam pelo ditador e, no caso do Brasil, aglutinaram-se no bozo várias coisas: o ditador, o justo, representante de Deus, o mito (só faltaram citar Freud quando fala sobre o pai da horda primeva, aquele mesmo que é devorado pelos filhos).
A religião é uma representação macro para algo que já temos desde nossa formação psíquica, que obviamente é influenciada pelo macro (o contexto histórico e social), isso de estar submetido ao Outro, posição que afinal, teoricamente nos protegeria do desamparo por nos dizer que caminhos devemos seguir. Mas aquilo que é indicado não é a partir de nosso desejo, mas do Outro. Para a psicanálise, o poder deste Outro pode sim ser questionado. Não é o que justamente representa o discurso histérico? Mas este é um questionamento sem volta, porque uma vez começado o processo de travessia do fantasma, cada passo faz ruir um pedaço da ponte que nos garantiria o retorno.
No Discurso aos católicos, Lacan cita Freud para dizer que "o eu é feito das identificações superpostas à maneira de casca, espécie de armário cujas peças trazem a marca do tudo-pronto, embora a combinação não raro seja bizarra". Numa análise trata-se de despir-se, arrancar a casca e deixar as coisas na carne nua, na pele viva, já que essa imagem anterior de nós mesmos não nos contém em nada. Ainda que pareça uma imagem "imóvel, apenas seu esgar, sua flexibilidade, sua desarticulação, seu desmembramento, sua dispersão aos quatro ventos esboçam indicar qual é seu lugar no mundo".
Então, se a religião é para "curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona", a psicanálise está num lugar completamente diferente, Lacan dirá “de muda”, para olharmos de frente para o que não funciona, para encararmos o real. É preciso uma coragem absurda, brutal, para seguir este caminho de suportar e dar um sentido próprio ao desamparo, à castração. Não ter respostas prontas é das coisas mais difíceis da vida. A religião triunfou, mas e quanto à psicanálise? Enquanto houver resistência, enquanto houver perguntas, enquanto houver espaço para dúvidas, questionamentos, singularidades, estaremos de mãos dadas na contra-mão.
P.S.: Para quem está com os dedos no gatilho para me xingar por este texto, lembre-se que ter uma religião não é o problema, o problema é achar que todos devem pensar de maneira igual, impor uma "república fundamentalista", nos termos de Vladimir Safatle, em seu texto na Folha: (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/11/republica-fundamentalista.shtml).
Isloany Machado, 25/11/2018.